Tema: Religiões
Por Ordep José Trindade Serra Graduado em Letras pela Universidade de Brasília, Mestre em Antropologia Social também pela UNB e Doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo, com Pós-Doutorado em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia. 

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Estudiosos que se dedicam a pesquisas sobre religião logo de saída veem-se a braços com uma questão embaraçosa. O embaraço tem a ver com dúvidas sobre o alcance do conceito que define o campo da pesquisa, o objeto da abordagem ensejada. Os pensadores que desde o século XIX se empenharam em constituir, na esteira de Max Müller, uma Ciência da Religião não demoraram a chocar-se com essa dificuldade. O pressuposto, a princípio bem admitido, de que a religião seria um universal antropológico, algo encontrável nas mais diferentes sociedades e culturas, viu-se questionado. A pesquisa empreendida pelos comparatistas revelou uma diversidade desconcertante, tornada mais desafiadora à medida que o projeto da Religionswissenschaft se ampliava, alargando o âmbito de suas investigações. Ao cabo, a nova ciência tornou-se um campo multidisciplinar e sua fragmentação hoje reflete a natureza proteica de seu objeto. O mesmo problema se coloca nas sociedades complexas em que se cruzam diferentes culturas.

Um sintoma claro do que tem de problemático o conceito de religião transparece quando se leva em conta a história desta palavra e se tenta encontrar-lhe correspondentes nos diversos idiomas do ecúmeno. O nome “religião” está presente sob distintas formas no vocabulário das línguas ocidentais modernas e entre seus falantes há razoável consenso quanto a seu significado. Mas não há como estender o consenso para além deste círculo, mesmo quando o avanço se limita a civilizações de que a ocidental é herdeira. Há muitos estudos sobre a religião dos gregos antigos, mas os seus autores bem sabem que até o primeiro século de nossa era não existia na língua dos helenos nenhuma palavra que correspondesse a “religião”. No hebraico antigo não há termo equivalente. E religio não tinha para os romanos antigos o mesmo significado que o termo derivado tem hoje em diferentes línguas. 1 Só na chamada idade moderna substantivos religio e seus derivados vernáculos tomaram o sentido que hoje têm nas línguas europeias. Na imensa maioria dos idiomas do mundo não há vocábulo que traduza o nosso termo “religião”.

Os primeiros habitantes da Bahia não tinham em seus idiomas uma palavra que correspondesse a religião. Não encontramos correspondência para este nome nas línguas do tronco tupi ou do gê, da gente primeiro encontrada aqui pelos portugueses. No arranjo da “língua geral” que os jesuítas formalizaram com base no tupi-guarani, o vocabulário indígena foi reelaborado arbitrariamente de modo a introduzir novos conceitos adequados à catequese. A manipulação assim feita produziu uma nova modelagem idiomática, alterando o sentido de muitos termos, com aproximações ousadas, incluindo a adaptação de figuras míticas indígenas ao campo da mitologia cristã. O trabalho linguístico desenvolvido pelos jesuítas foi muito além da composição de uma gramática: eles impuseram aos índios um novo código. Tiveram nisso um grande êxito. A “ língua geral” por eles consagrada foi o idioma por largo tempo mais utilizado no Brasil e ainda se fala no norte do país. A rigor, foi uma criação linguística e ideológica, instrumento de uma nova modalidade de socialização que delineou a cultura mameluca da colônia, em seus primeiros tempos.

A juízo dos jesuítas, os indígenas brasileiros não tinham religião.2 Eram vítimas do demônio que lhes teria inculcado crenças e hábitos nefastos. Em todo o caso, os bons padres se empenharam em buscar na cultura dos índios vestígios da verdade da fé por suposto difundidos entre todos os povos pela Divina Providência: inspirava-os a antiga doutrina dos lógoi spermatikoí (sementes do Verbo) de que se valeram na Antiguidade os Padres Apostólicos a fim de explicar coincidências entre a revelação cristã e alguns elementos das práticas pagãs (em particular das chamadas religiões de mistério).

A catequese jesuítica foi muito criativa. É inegável que os apóstolos do Novo Mundo tiveram grande êxito no Brasil, mas a reação dos seus catecúmenos em parte os desconcertou. Era coisa nova para os índios uma fé que se professa e de um modo geral eles acolheram bem essa novidade.

No caso de religiões “missionárias” como o cristianismo e o islamismo, o imperativo da profissão de fé exige mais que uma simples adesão: esta quer-se reiterada, confirmada, vivenciada. Foi grande o desengano dos jesuítas com os índios brasileiros que aceitavam prontamente o batismo e a evangelização, mas com a mesma facilidade deixavam de lado os preceitos da religião adotada, sem comprometer-se de fato com ela.3 Os catequistas que atuaram no Brasil colonial experimentaram ainda outro embaraço, que lhes pareceu mais grave ainda: escandalizou-os profundamente o messianismo sincrético, fruto de sua pregação, que floresceu entre índios fugitivos dos aldeamentos jesuíticos.4

Em culturas religiosas como a cristã e a islâmica fica difícil entender (e aceitar) a atitude de quem admite ligação com diferentes cultos. Na África Ocidental, por exemplo, tanto cristãos como muçulmanos que lograram converter membros de diferentes etnias não poucas vezes se espantaram (e se indignaram) com a atitude dos novos fiéis que aderiam ao cristianismo, ou ao islamismo, mas permaneciam ligados a seus cultos ancestrais. Também no Brasil isto se verificou. Ainda são muitos os adeptos de cultos afro-brasileiros (como o candomblé e o xangô) que se consideram católicos; outros já não o declaram, mas continuam a participar de rituais da igreja de Roma, por devoção a santos que seguem associando às divindades do seu culto.

A MATRIZ CRISTÃ

Não é possível discorrer sobre religião na Bahia sem tomar como referência o cristianismo e em especial a Igreja Católica. Isto se impõe por razões históricas e também por outras, mais imediatas: dá-se que contemporaneamente a imensa maioria da população baiana se declara cristã e entre os cristãos baianos prevalecem ainda os católicos. Na linguagem do povo da Bahia — sobretudo no interior do Estado — ainda é hábito empregar o termo “cristão” com o significado de “humano, pessoa humana” (“Quem será esse cristão que chegou há pouco?”). Embora nos dias de hoje isso seja menos frequente, ainda acontece também (quando nada em certos círculos) empregar-se aqui o termo “católico” como sinônimo de “certo, correto, normal”: é o que vê na expressão “Isso não é muito católico”, usada no sertão baiano para caracterizar algo que se estima aberrante.

Além desses motivos há outras razões para destacar aqui o cristianismo e sobretudo o catolicismo, que foi religião oficial do país durante a maior parte de sua história e por séculos teve na Bahia o centro de sua organização eclesiástica. É que a maneira como concebemos religião tem a ver com o perfil desta que ainda hoje predomina entre nós.

O PARADIGMA

Quando nos propomos a caracterizar o que seja religião pensamos logo em crenças ligadas a símbolos e valores de um tipo especial. Destacamos a fé em divindades, em espíritos, em seres e planos de realidade que transcendem tanto a esfera humana quanto a natureza, segundo esta se nos dá a conhecer “normalmente”, em nosso horizonte de observação rotineiro, ou ainda na arena da ciência. No plano axiológico, destacamos a preeminência de valores que se relacionam com a noção de sagrado, inseparável de seu oposto, o profano, e temos por certo que eles se congeminam a princípios éticos, definem uma ética. No tocante ao arcabouço simbólico, postulamos a existência de histórias sagradas (mitos) e a vigência de ritos que se combinam de modo a compor um culto. Presumimos que símbolos, crenças e valores religiosos se articulam num sistema suscetível de exprimir-se numa doutrina e que esse código requer uma adesão formal, exige uma fidelidade em princípio exclusiva, além de impor certos padrões de conduta. Percebemos que assim se constrói uma identidade social sui generis. Pressupomos que semelhante complexo de ideias, sentimentos, práticas e valores sempre se apoia em algum tipo de instituição, ou de organização, cujo funcionamento requer uma hierarquia estabelecida de “especialistas do sagrado”. Constatamos que instituições do gênero atendem a uma demanda de bens imateriais considerados muito valiosos pelos interessados, como a “salvação”, a “purificação”, a “beatitude”, o “bem-estar espiritual”. Estamos cientes da existência de uma grande variedade de religiões e nos damos conta de que em nosso meio há um “mercado de salvação” em que elas competem.

É fácil ver que em muitas culturas isso não ocorre. A crença em divindades e entes similares pode estar ausente mesmo onde encontramos uma ritologia elaborada e onde constatamos a presença de vários outros traços que associamos ao comportamento religioso.

Entre nós, religião se professa; mas isso não se verifica em muitas sociedades onde há crenças e práticas que tendemos a ligar com a esfera religiosa. Mesmo no Ocidente moderno temos “mitologias” que independem da religião e encontramos uma pletora de “ritos profanos”.5

A FONTE: AS RELIGIÕES DO LIVRO

Dá-se que estamos marcados por uma longa experiência histórica com as chamadas “religiões do livro” (judaísmo, cristianismo, islamismo), declaradamente monoteístas e próximas pela origem. Elas recebem esse epíteto porque apoiam sua prática em textos sagrados dos quais derivam suas doutrinas, embora não sejam as únicas com tal característica.6 Os seus livros santos vêm a ser objeto de infindável interpretação, que é também fonte de divergências. Sua exegese sempre recomeçada induz a uma busca contínua de sistematização, exigindo, pari passu, um árduo trabalho de formação de consensos. Nesses casos é lícito falar de confissão religiosa: requer-se uma adesão, mais ou menos ritualizada, à matéria de fé (a um corpo de dogmas) e declará-la implica no compromisso de uma fidelidade exclusiva. A esse imperativo se combina, de modo nem sempre harmônico, uma perspectiva universalista, visto como a adesão à fé desse modo proclamada é possível, em princípio, para toda a humanidade, ou mesmo exigível de toda humanidade: qualquer um pode tornar-se fiel do Deus único, considerado Senhor e Criador de todos os humanos. No caso dos judeus, um limite étnico prevalece na difusão do compromisso religioso, o que limita o proselitismo. (Para os hebreus, Javé é deus de todos, porque criou a humanidade e o mundo inteiro, mas tem um povo eleito). Já muçulmanos e cristãos assumem de pleno a visada universal de seu credo, cuja aceitação buscam sempre expandir. Em religiões como estas, a profissão de fé, uma vez consumada, exclui qualquer outra dedicação religiosa: não se pode ser ao mesmo tempo muçulmano e cristão, judeu ortodoxo e xintoísta. Fundamenta-se o imperativo da fé no pressuposto de uma revelação que se quer decisiva.

Assim como o islamismo, o cristianismo é tipicamente uma religião de conquista: requer fidelidade plena e busca a conversão dos adeptos de outros credos, dos ateus e dos indiferentes — dos infiéis, em suma. Cristãos e muçulmanos sempre se empenham na pregação de suas doutrinas, na imposição de seu credo. Promovem missões. Historicamente confiaram a impérios e reinos a difusão de sua doutrina. Comprometeram-se com grandes empreendimentos de colonização. Efetuaram “guerras santas”: cruzadas e jihads. Formaram poderosas estruturas hierárquicas centralizadas, prontas a defender a pureza de seus dogmas, mas nunca puderam evitar as divergências que dividem os adeptos de seus credos e multiplicam as variantes doutrinárias. É que a criação de ortodoxias tem como corolário inevitável o surto de heresias. Os hereges, por sua vez, consideram-se ortodoxos e imputam aos outros a heterodoxia de que são acusados. No caso do cristianismo a competição entre as igrejas, correntes e denominações distintas tem sido especialmente acirrada e marcada por sérios conflitos. O combate da Igreja Católica à heresia também marcou o Brasil. E em particular a Bahia.

AINDA O MODELO

Quando buscamos indagar sobre a natureza do fenômeno religioso é quase inevitável que, de começo, tomemos por modelo as religiões dominantes em nosso entorno. Assim tendemos a ligar religião com fé em Deus, ou em deuses. Ficamos surpresos ao encontrar em outras culturas condutas e valores que nos sugerem um comportamento religioso, mas não guardam relação com a crença em divindade nem se apoiam em qualquer forma de organização eclesial.7

Durkheim mostrou a inconsistência das tentativas de cingir o religioso a crenças no sobrenatural e a adoração de divindades. Lembrou que o budismo, por exemplo, não postula a existência de deuses. Por fim, ele chegou a sua famosa definição de religião como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, isto é, separadas e interditas, as quais reúnem numa comunidade moral, chamada igreja, todos os que lhe aderem”.8 O mestre francês inspirou-se na interpretação de noções vigentes tanto na tradição hebraica quanto na greco-romana, a que associou análogos encontrados por etnólogos na pesquisa de sociedades africanas, americanas e asiáticas.9 A abordagem teórica consagrada pela Escola Francesa de Sociologia ficou longe de esgotar os debates sobre a natureza da religião, mas notáveis ensaios de teólogos e historiadores mostraram certa convergência com esse enfoque ao fazer da dialética de sagrado – profano a característica do religioso, seu núcleo essencial. Mircea Eliade deu a mais elaborada expressão a esse ponto de vista.10Mas logo surgiram dúvidas quanto a seu alcance.

O PROBLEMA DO XAMANISMO

Sagrado – profano não são categorias vigentes na esfera do xamanismo ameríndio, por exemplo, conquanto ele envolva a crença em seres que transcendem o plano ordinário de realidade, “espíritos” com quem pessoas especialmente dotadas podem comunicar-se. Embora a terapia que os xamãs indígenas efetuam implique na performance de ritos, nesse caso os etnólogos hesitam em falar em culto.11

Isso nos traz de volta ao problema da religião dos índios do Brasil e em particular dos que habitavam a Bahia. Os tupis que os portugueses encontraram nesta terra tinham seus paye e há xamãs congêneres entre os povos indígenas ainda hoje existentes em território baiano. Como categorizar seus ritos?

A resposta a essa pergunta exige o exame de uma questão preliminar.

Muito se tem discutido sobre o conceito de xamanismo e sua sua aplicabilidade a sistemas encontrados em diferentes culturas, rotulados assim com base em aproximações que às vezes parecem torná-lo muito elástico. Questiona-se também a pertinência de incluir o xamanismo entre as religiões.

Ora, neste caso é preciso evitar tanto a generalização apressada quanto o rigorismo hipercrítico. Falar de xamã e xamanismo apenas no tocante às práticas mágico-religiosas de tunguzes e samoedos já não se justifica. Não se pode ignorar a existência de arranjos similares constatados por etnólogos em diferentes regiões da Ásia, da África, das Américas. É impossível negar a recorrência de vários traços comuns que se acusam em contextos socioculturais distintos, configurando um mesmo tipo de praxe e de cosmovisão.12 Os modelos cosmológicos implícitos por certo mostram variação, mas é inegável a similaridade das técnicas e das crenças envolvidas. Segundo o consenso atual dos estudiosos, é lícito, sim, falar de um xamanismo ameríndio.

Ora, os esquemas xamânicos apresentam muitos pontos de contato com ideias, valores e práticas vigentes em religiões antigas e modernas. O próprio esforço que diferentes igrejas muitas vezes fizeram para proscrever os xamanismos denuncia essa relação, pois elas situavam os fazeres xamânicos no polo negativo do sagrado. 13  

Em contato com sociedades modernas os xamãs indígenas tendem a caracterizar sua prática como religiosa. Na Bahia contemporânea os índios categorizam assim a atividade dos seus pajés. O rito coletivo do toré com a invocação de encantados é por eles descrito como uma cerimônia da sua religião.

UMA PREVISÃO FRUSTRADA

O pressuposto de uma evolução que conduziria necessariamente ao tipo de religiosidade dominante no mundo ocidental — a um monoteísmo por sua vez pronto a ser ultrapassado por uma visão secular do mundo, segundo muitos previram — está na base de construções teóricas que pretenderam abarcar, à distância, todo o panorama religioso, na extensão do ecúmeno e ao longo do curso histórico, enquadrando nesse panorama diferentes culturas. O pressuposto de uma mentalidade pré-lógica invocado implícita ou explicitamente para justificar as elaborações teóricas sobre animismo e fetichismo, por exemplo, acabou por torná-las caducas. O avanço da etnologia tem mostrado a precariedade desses rótulos, o caráter arbitrário de sua aplicação a diferentes formas de prática religiosa.

Não se confirmou a previsão iluminista (e positivista) de que a religião tenderia a desaparecer no mundo moderno com o avanço do progresso tecnocientífico. Na Europa as igrejas cristãs, outrora soberanas, tiveram sua influência seriamente reduzida e tem crescido o número de ateus, de agnósticos, de não afiliados a qualquer credo; mas não foram só as ondas de migrantes que fizeram recrescer a fé no continente europeu, onde hoje se multiplicam as mesquitas. Lá também se tem renovado o mercado de salvação com o concurso de crenças “exóticas” (na maioria orientais) ao compasso do florescimento do neopaganismo, com o renascer da Wicca e do seidhr, por exemplo. Nos Estados Unidos da América do Norte proliferam cultos variados, novas igrejas nascem a cada instante. Uma pletora de denominações cristãs prevalece, mas a migração também produz uma variedade considerável de outras expressões religiosas.

Em todo o mundo o cristianismo continua a ser hegemônico, seguido pelo islamismo, mas em terceiro lugar está o grupo dos que não declaram afiliação religiosa, incluindo os ateus e agnósticos.

No Brasil os últimos censos têm acusado uma transformação significativa do panorama religioso. O catolicismo ainda predomina, mas tem perdido espaço de maneira contínua — e crescente — para novas denominações evangélicas que também superam as mais antigas e tradicionais. O crescimento exponencial do neopentaecostalismo é fenômeno mais significativo nessa transformação. Por outro lado, verifica-se também no país o crescimento dos “sem religião”.14 Claro está que a Bahia se inclui neste quadro, mas com peculiaridades que convém destacar.

A IGREJA CATÓLICA NA BAHIA:

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR ) perdeu muitos privilégios ao separar-se em 1890 do Estado brasileiro, mas preservou grande influência e fez notáveis esforços com vistas a recuperar pelo menos algumas das prerrogativas que tivera no regime do Padroado.15 Viu-se, porém, frustrada na luta contra o liberalismo laicizante (apoiado pela maçonaria) que vingou no Império e triunfou na República. Reagiu com vigor, mas sem sucesso, contra a acolhida dada às missões protestantes que desde o reinado de D. João III se instalaram no Brasil e logo se multiplicaram, ameaçando seu monopólio religioso. Não pôde defendê-lo, mas tentou por todos os modos garantir sua preeminência.16 Uma das suas tentativas mais exitosas neste sentido ocorreu na terceira década do século passado, com o movimento da Restauração Católica na qual se empenhou fortemente o Arcebispo Primaz do Brasil, Cardeal Dom Augusto Álvaro da Silva, que fez uma aliança conservadora com o Estado Novo, apoiando fortemente seu interventor na Bahia. Ele foi também um prócer da chamada romanização e talvez tenha sido o expoente mais significativo do conservadorismo católico na Bahia, no século passado: fez valer sua orientação por cerca de um trintênio. Mas suas concessões aos governantes e sua atitude autoritária o fizeram também impopular.17

Na sequência, a relação entre a ICAR e o Estado seria bem mais instável e flutuante no Brasil, passando por momentos de grande aproximação e por outros de distanciamento crítico, ou de oposição mais ou menos franca: depois de ter apoiado no seu início o regime militar que se instalou em 1964, do meio para o fim da ditadura a ICAR se lhe opôs com vigor. Na Bahia essa oposição teve o comando discreto mas firme do Cardeal Dom Avelar Brandão Vilela. No presente momento, em que a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB se viu (entre outras instituições) comparada a uma hiena atacando o “leão” presidencial, a relação ICAR – Estado resulta tensa em todo o país. Os privilégios concedidos pelo atual governo a igrejas evangélicas também contribuem para isso.

Claro está que a ICAR, mesmo em sua estrutura clerical, está longe de ser um monobloco e que o catolicismo não se limita ao campo de ação do clero. Na instituição há muitas correntes que discreta mas constantemente disputam entre si a hegemonia. A política da cúpula eclesial no Brasil reflete o jogo variável dessas diferenças, reagindo também às mudanças (por vezes muito acentuadas) que se verificam no Vaticano a cada concílio e (quase) a cada Papado. A hierarquia tem um peso muito grande, mas não impede que vinguem orientações distintas no pensamento e na prática de setores do clero católico. Eis um exemplo: embora tenha sido muito combatida e quase proscrita na ICAR, a Teologia da Libertação resiste ainda no seu seio e inspira muitos clérigos em sua atuação, inclusive na Bahia.

Por muito que seu poder efetivo tenha diminuído e que ela tenha visto sua grei reduzir-se, não é possível minimizar a importância desta igreja que conta na Bahia com três arquidioceses e dezenove dioceses. O Arcebispo de Salvador ocupa a sede primacial do Brasil, posto que lhe confere prestígio na comunidade eclesiástica e dá ampla repercussão a seus pronunciamentos em todo o país. As Pastorais da ICAR são dinâmicas, muitas delas com grande penetração nos meios populares, onde se articulam com movimentos sociais, dão suporte a comunidades carentes, apoiam suas demandas e assim influem no questionamento, na reivindicação e na proposição de políticas públicas.

A Igreja Católica conta na Bahia com uma universidade, vários colégios e escolas. Dirige também instituições filantrópicas. Assim atua de modo notável nos campos da educação, da saúde e da assistência social. Já teve mais destaque e eficiência no que toca a controle de meios de comunicação. Feitas as contas, tem ainda uma força política considerável. A CNBB sempre se pronuncia sobre assuntos relevantes não só em matéria de religião e costumes como também de Direitos Humanos e cidadania. Bispos baianos têm sido muito proativos nessa organização.

A ICAR sofreu mudanças muito grandes neste país onde já foi a única religião admitida e um tipo de “instituição total”. Sua doutrina era protegida pela força e desafiá-la resultava muito perigoso. Com o tempo, ela teve de tolerar a presença de outras religiões e empenhou-se por muito tempo em combatê-las com afinco. Mas adaptou-se ao Estado laico de que conseguiu arrancar vantagens e garantir para si certa preeminência.

Não há muito que ela se propôs ao ecumenismo, tentando embora limitá-lo ao campo das igrejas cristãs; em todo o caso, já acata o diálogo interrreligioso em círculos cada vez mais amplos.

Os conservadores quase sempre prevalecem na ICAR, mas parte considerável do seu clero e dos leigos ativos em seu seio comprometeu-se efetivamente com causas sociais libertárias e com a defesa da cidadania, abraçando a “opção pelos pobres”. Na Bahia, como em outras partes do Brasil, o Centro Indigenista Missionário atua de forma corajosa na defesa dos direitos dos povos indígenas, com pleno respeito a suas tradições, religiosas inclusive. Os sem teto, os sem terra, os pescadores artesanais, as mulheres marginalizadas, os migrantes, os afro-brasileiros vítimas de racismo estrutural, muitas comunidades ameaçadas são apoiadas por Pastorais da Igreja Católica na luta contra a violência, a privação de direitos, a desigualdade, a opressão de grupos poderosos. Mas na Igreja Católica também há fundamentalistas, como os Arautos do Evangelho e os carismáticos, ambos presentes na Bahia. A extraordinária penetração dos neopentecostais neste Estado diminuiu muito o rebanho católico, mas a ICAR ainda constitui uma grande força no campo religioso baiano.

CATOLICISMOS. VARIEDADES E TRANSFORMAÇÕES

Uma abordagem do catolicismo baiano não pode cingir-se à apreciação da doutrina da igreja, de suas praxes, de seu clero. Ainda que na Bahia muitos se declarem católicos, nem sempre suas crenças e atitudes se conformam à ortodoxia. No conjunto dos que aqui professam a fé católica observa-se certa diversidade que leva a distinguir diferentes estilos ou formas de catolicismo. Seria impossível descrever em termos breves essas modalidades de vivência católica, mas pode-se destacar algumas delas, quando nada em termos aproximativos.

Existe um segmento muito cioso da observância das normas emanadas da autoridade eclesiástica, atento às prédicas do clero, assíduo e participativo nos ofícios religiosos, dedicado e devoto. Mas trata-se de um grupo minoritário. A grande maioria dos baianos autodeclarados católicos pouco frequenta os templos da ICAR: em geral, apenas recorre aos seus sacramentos em momentos que marcam ritualmente passagens do ciclo de vida (batizados, bodas, ofícios fúnebres), ou em situações críticas. Os membros deste vasto grupo respeitam o clero mas não seguem com rigor o que os sacerdotes recomendam. Quase todos admitem o divórcio e o uso de anticoncepcionais, assim como o sexo antes do casamento; não se privam de criticar o que consideram “atraso da igreja”. Dizem-se católicos mas não praticantes. Tendem à tolerância, aceitam que outras religiões podem ser tão boas quanto a sua. Os praticantes mais rigorosos por vezes os chamam de católicos nominais.

Já outros segmentos que afirmam com ênfase sua fé católica e mostram profunda devoção têm crenças e atitudes religiosas que não correspondem aos dogmas nem aos ditames das autoridades eclesiásticas, antes se inspiram em tradições que a doutrina da ICAR não ratifica.

A massa dos colonizadores ibéricos trouxe para o Brasil um catolicismo popular com peculiaridades notáveis: grande ênfase no culto dos santos, crença em milagres e aparições (de seres celestes mas também de demônios ameaçadores), devoção a beatos padroeiros e às almas do purgatório, o gosto pelas festas solenes a que se associavam manifestações lúdicas profanas. O desejo da redenção também inspirava esperanças messiânicas que podiam suscitar tendências heréticas, como o sebastianismo. Nesse amálgama tradições pagãs se misturavam aos ritos da igreja. O medo da feitiçaria implicava a crença em seu poder e denunciava desejos encobertos. Esse emaranhado alimentou uma rica mitologia, fomentou devoções extra-canônicas que a ICAR não controlava e além de ampliado foi modificado na América Latina pela interferência de outras culturas, de povos submetidos ao projeto colonial.

Entre as variedades de catolicismo popular reconhecíveis no Brasil a que mais floresce no sertão baiano, assim como em grande parte do Nordeste (nas plagas do semiárido) é marcada por devoção a santos milagreiros, pela profunda confiança em pregadores carismáticos, considerados taumaturgos, pela ênfase na penitência e na oração fervorosa, com toques messiânicos e apocalípticos. O exemplo mais claro e dramático dos desenvolvimentos que pode ter esse catolicismo sertanejo foi Canudos, a comunidade liderada por um devoto leigo dotado de grande carisma, o beato Conselheiro. Ele e seu povo se consideravam católicos, mas sofreram a condenação da Igreja que assim coonestou a chacina empreendida pelo exército brasileiro em defesa dos privilégios de latifundiários e em nome de ideais republicanos.

Ainda vive nos sertões da Bahia, assim como em outros estados nordestinos, o culto do taumaturgo Padre Cícero que foi tornado santo pela Igreja Católica Brasileira mas é objeto de profunda devoção por parte de nossos “católicos apostólicos romanos”. A memória de Padre Cícero foi uma das fontes de inspiração do movimento de Pau de Colher, que também tentou vingar o Conselheiro.18

Na borda da Baía de Todos os Santos e em todo o Recôncavo baiano, onde predomina a população negra, o catolicismo popular tem outras características que em parte relevam da forte influência das religiões de matriz africana. As grandes procissões e as famosas festas de largo que dão ocasião a folguedos diversos são suas manifestações mais espetaculares. Salvador é conhecida pela legenda de suas 365 igrejas e atrai muitos visitantes que demandam templos famosos, como o de Nosso Senhor do Bonfim. A recente canonização de Irmã Dulce (agora Santa Dulce dos Pobres) já provoca nova onda de peregrinações à capital baiana e renova entre os católicos brasileiros o prestígio religioso da Cidade do Salvador.

ONDAS EVANGÉLICAS. “HISTÓRICOS” E PENTECOSTAIS NA BAHIA

Foram os protestantes que romperam o monopólio religioso da ICAR em terras brasileiras, tornando-se os primeiros a empenhar-se na luta pela liberdade religiosa neste país. Quando o Brasil se tornou Reino Unido a Portugal e Algarves, com a vinda do monarca para a antiga colônia e a abertura dos portos às nações amigas, a Inglaterra forçou o rei, seu “tutelado”, a aceitar que ministros evangélicos aqui se instalassem e erigissem suas igrejas. Os anglicanos e outros protestantes britânicos tiveram a precedência, mas foi dos Estados Unidos da América do Norte (e quase sempre dos seus estados sulistas) que vieram em sucessivas ondas as grandes missões evangélicas. Predominavam, a princípio, os metodistas, os presbiterianos e os batistas. Mas logo núcleos de várias outras denominações se implantaram e prosperaram aqui. De início não foram bem acolhidos. A ICAR lhes fez séria oposição. Na Bahia, assim como em outras regiões do Brasil, sucederam-se conflitos. Católicos fanáticos hostilizavam os protestantes de diversos modos, não raro chegando à agressão física. Zombarias e insultos contra os “hereges” das “novas seitas” eram usuais. Todavia os protestantes ganharam terreno, a princípio lentamente, enquanto o número de católicos aos poucos deixava de crescer. Em 1872, a imensa maioria da população brasileira (mais de 99%) declarava-se católica. Ao longo de um século, este contingente sofreu uma pequena, mas constante redução, ficando por volta de 1970 em 91,8 %. Já em 2010 a percentagem de católicos encolheu para 64,6%. Ou seja, a princípio verificou-se apenas uma lenta diminuição do número dos católicos, mas esta queda se acelerou muito no presente século. Já os evangélicos em meros quarenta anos (entre 1970 e 2010) saltaram de 5,2% para 22,2 da população. De acordo com um estudo do Pew Research Center, entre 2013 e 2014 os protestantes representavam 26% dos brasileiros. O Datafolha estimou que em fins de 2016 eles já constituíam 29% da população do país. De acordo com projeções que vêm sendo feitas, mantida a atual tendência o número dos evangélicos pode ultrapassar o dos católicos no Brasil por volta de 2032.

No campo do chamado protestantismo histórico avultam aqui os batistas, com 3,7 milhões de de fiéis, seguidos pelos presbiterianos e pelos adventistas (cada qual com um milhão e meio de adeptos), depois pelos luteranos (1 milhão) e finalmente pelos metodistas, com cerca de 340 mil seguidores. No meio pentecostal prevalece a Assembleia de Deus (12, 3 milhões) seguida pela Congregação Cristã no Brasil (2,3 milhões). Entre os neopentecostais avulta a Igreja Universal do Reino de Deus (1,8 milhão) assim como a Igreja do Evangelho Quadrangular (1, 8 milhão). A Assembleia de Deus é a religião evangélica que apresenta o maior crescimento. As igrejas neopentecostais de implantação mais recente se multiplicam aqui de maneira espantosa. É evidente que a ICAR vem perdendo fiéis para elas.

No Censo de 2010 verificou-se que 65,2 % dos baianos se declararam católicos contra 17, 4 % de evangélicos. O crescimento do contingente evangélico deveu-se aos pentecostais.

Na Bahia como em todo o Brasil distinguem-se os chamados protestantes históricos dos pentecostais e mais ainda dos neopentecostais, embora se verifique em certos casos a influência destes últimos sobre os primeiros, devidas ao grande êxito do neopentecostalismo na propagação de sua fé. No caso dos protestantes históricos as diferenças de liturgia e doutrina não impedem aproximações nem a comunhão de princípios, mas, por outro lado, no seio de uma mesma denominação e até de uma mesma igreja podem conviver diferentes orientações no tocante a inclinações políticas, paradigmas éticos (pautas de conduta relativas a costumes) e até quanto a perspectivas teológicas. Prevalece a tendência conservadora, com certas inclinações para o fundamentalismo. Este é o traço que mais aproxima muitos dos protestantes históricos dos neopentecostais, embora entre os primeiros se verifique certa resistência (ora maior, ora menor) à teologia da prosperidade. Mesmo assim, uma parcela de protestantes históricos participa efetivamente, no Congresso Nacional, da chamada “bancada da bíblia” (onde prevalecem os neopentecostais), aliada fiel da “bancada do boi” e da “bancada da bala”, configurando um poderoso bloco de direita. O mesmo se verifica em bom número de parlamentos brasileiros, na esfera estadual e municipal, onde o ativismo político dos evangélicos tem sido muito pronunciado nos últimos tempos. É o que se constata na Bahia. Por outro lado, se é verdade que parte do segmento dos protestantes históricos encorpa a direita e até a extrema direita, se é fato que em seu meio prevalece a tendência conservadora, há também na Bahia evangélicos tradicionais que repudiam com vigor o fundamentalismo, comungando uma orientação lato sensu ecumênica que os faz buscar o diálogo inter-religioso mesmo para além do bloco cristão. A teologia da libertação inspira muitos pastores dessa grei que aliás participaram ativamente de sua edificação. Eles se mostram muito ativos no combate à desigualdade, na denúncia da injustiça social e na acolhida ao feminismo, assim como na defesa dos direitos da comunidade LGBTQ, por exemplo.

A TERCEIRA ONDA

A movimentação evangélica que alterou significativamente o panorama religioso do Brasil ficou conhecida como “terceira onda pentecostal”. Essa onda espraiou-se por todo o país em fins da década de 1970 e alcançou logo a Bahia, onde se propagou de forma célere: tomou grande vulto já em meados da década seguinte. A Igreja Universal do Reino de Deus - IURD vem a ser a mais rica e poderosa das instituições neopentecostais que então se implantaram no Estado da Bahia. Seguiram-na outras, quer surgidas de dissidência no seio da própria IURD (como a Igreja Internacional da Graça de Deus e a Igreja Mundial do Poder de Deus), quer assemelhadas, como as chamadas Renascer em Cristo, Sara Nossa Terra, Igreja Nova Vida, Igreja Bíblica da Paz, Igreja Cristo Salva, Igreja Nacional do Senhor Jesus Cristo etc. Além dessas, de origem sudestina (e da Assembleia de Deus, procedente do norte e de implantação muito mais antiga),19 outras foram criadas na Bahia numa espantosa proliferação, verificável principalmente nos bairros populares de Salvador. Pesquisa empreendida pelo antropólogo Cláudio Pereira na década de 1990 constatou a existência de 21 igrejas neopentecostais só no bairro soteropolitano de Cosme de Farias. 20 É fácil constatar que essa proliferação não cessou.

No interior a penetração neopentecostal é também muito forte, na Bahia como em todo o Nordeste brasileiro. É para essa nova onda cristã que o catolicismo mais tem perdido espaço.

Algumas igrejas neopentecostais brasileiras têm se expandido por outros países da América, da África e da Europa, com vigoroso empenho missionário. A IURD é neste ponto a campeã. Todas exercitam um tipo de apostolado agressivo. Seus pastores mostram um ardor de cruzados e se distinguem por sua perícia na comunicação. As maiores dessas igrejas se destacam por seu perfeito domínio das novas tecnologias do ramo e por sua sólida organização empresarial. Apesar de certa fluidez doutrinária que torna difícil precisar-lhes o ideário e lhes permite “saquear” o acervo ritual de outras religiões (em especial das afro-brasileiras), seguem com firmeza a vertente da teologia da prosperidade. Nos últimos tempos, todavia, algumas delas já se inclinam para a chamada teologia do domínio (dominion theology), pouco menos que teocrática por sua ênfase nos privilégios dos cristãos e em seu direito a governar o mundo.

Os neopentecostais exibem aqui uma agressividade notável. As religiões de matriz africana se tornaram seu alvo predileto, na Bahia como em todo o Brasil. Por certo não foram eles que inventaram a intolerância e o racismo. A ICAR agiu com o rigor das visitações do Santo Ofício para reprimir expressões religiosas de indígenas e negros. Foi ela quem primeiro condenou os cultos afro-brasileiros e os estigmatizou, caracterizando-os como feitiçaria e associando-os ao diabo. Nos tempos atuais, todavia, a ICAR já não fala tanto no demônio. Os neopentecostais se apropriaram desta figura, que ganhou importância exponencial em sua pregação. Um de seus teologemas básicos vem a ser a santificação do sucesso e da riqueza. Assim eles se harmonizam bem com o espírito do capitalismo hodierno. Por outro lado, é fato que eles se dedicam efetivamente a atender aflitos, promovendo com notável eficácia a solidariedade em meio à gente desvalida. Cultivam entre os pobres e enfermos esperanças de sucesso e fortuna. Em sua propaganda dão ênfase à promessa de fazer cessar os sofrimentos. E fazem apelo a taumaturgia que encenam muito bem. No terreno dos costumes, são conservadores e se apresentam como defensores da família contra o que chamam de “ideologia de gênero”. Seu conservadorismo e o amplo domínio eleitoral que têm sobre seu rebanho lhes confere hoje considerável poder político.

RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS E ESPIRITISMO

De acordo com o censo de 2010, apenas 1,1 % da população baiana seria de espíritas e as religiões afro-brasileiras em conjunto só contariam com 0,3% dos baianos entre seus adeptos. É preciso cautela com esses números. Segundo o mesmo cômputo, não haveria em Goiás e no Ceará nenhum adepto das religiões de matriz africana. Sabe-se muito bem que isso não é verdade. Há que interpretar os dados. Está longe de ser insignificante a demanda aos centros espíritas na Bahia. Entre aqueles que os procuram há pessoas que não se consideram espíritas mas crêem na possibilidade de comunicação com as alma dos mortos e valorizam os médiuns. Se indagados sobre essa crença, por certo muitos mais a corroborariam. “Ser espírita” pode entender-se como “dedicar-se ao espiritismo”, o que será escolha de pouca gente. No caso dos adeptos da religião afro-brasileira, há tempos se sabe que poucos declaram sua afiliação religiosa. Os motivos são diversos. Uma parte do povo de santo também adere ao catolicismo e considera mais adequado declarar estas religião. Ainda há quem diga: “Minha religião é a católica, minha seita é o candomblé”. Em Salvador lideranças religiosas “do axé”21 têm condenado esta atitude, fruto da pregação de sacerdotes da ICAR cujos templos muitos candomblecistas frequentam. A noção de seita foi incorporada pelo povo a partir do discurso de tais pregadores. Muitos adeptos do candomblé viram na referida fórmula um modo de conciliar suas escolhas religiosas. Grande autoridades dos terreiros baianos ainda hoje fazem campanha para que a fé nos orixás seja declarada. A campanha intitula-se “Quem é de axé diz que é de axé”. Mas os responsáveis por este apelo reconhecem que têm tido pouco êxito. É que declarar-se adepto do candomblé ou da umbanda ainda significa para muitos expor-se a constrangimentos, por vezes muito sérios. A dura repressão que sofreram por parte da polícia fez com que o povo do axé se acostumasse a ocultar sua religião. Hoje, principalmente nos bairros mais pobres de Salvador e no interior da Bahia quem se declara adepto do candomblé pode ser objeto de ódio religioso, ver-se humilhado e maltratado, tachado de feiticeiro e filho do demônio, ou mesmo agredido.

O candomblé é a religião afro-brasileira que predomina na Bahia, princialmente em Salvador, no Recôncavo e no Baixo Sul. No Brasil inteiro a Bahia é conhecida como “a terra do candomblé”. Na Chapada Diamantina pratica-se o jarê, um culto muito semelhante ao do candomblé de caboclo e ao rito da jurema praticado no sertão de diversos Estados nordestinos. Em todo a Bahia faz-se presente a umbanda, o mais difundido dos cultos de origem africana, que alcançou o Nordeste a partir do Rio de Janeiro e por toda a parte tem influenciado os ritos congêneres, de que também absorveu muita coisa. O termo candomblé designa uma variedade de ritos (re)criados no Brasil por negros africanos e seus descendentes, com a incorporação de elementos do Novo Mundo. Povo de santo, ou povo de axé, vem a ser o nome genérico dado ao conjunto de adeptos desta religião. As várias modalidades do culto do candomblé, que se distinguem por diferenças de liturgia e de repertório mítico, são relacionadas com (ou atribuídas a) tradições étnicas distintas. Como dizem os candomblecistas, elas correspondem a diferenças de nação. Assim os membros de um determinado terreiro se distinguem de outros segmentos do povo de santo declarando qual é sua nação. Um iniciado dirá que é ketu, ou jeje, ou ijexá, ou angola etc. Esses nomes gentílicos, assim como o próprio termo “nação”, com efeito apontam para presumíveis origens étnicas, mas na prática a distinção assinala a tradição litúrgica do grupo de que a pessoa faz parte, aludindo à origem dos fundadores do terreiro ou da “linha” nele seguida. Uma pessoa branca, de reconhecida origem europeia, pode declarar-se angola se tiver sido iniciada num terreiro que observa a liturgia conhecida por este nome. Uma pessoa negra ligada a um candomblé de caboclo dirá que caboclo é sua nação. O candomblé se dedica ao culto de divindades — chamadas, conforme a nação, de orixás, ou voduns, ou inquices ou bacuros — e também a antepassados semidivinos. Orixá é o termo mais empregado. O culto dos antepassados deve ser feito à parte da celebração dos divinos. 22 Os caboclos são equiparados aos orixás, ou apresentados como muito próximos deles e identificados como espíritos nativos do Brasil.

Assim como os católicos, os adeptos do candomblé se declaram monoteístas. Falam de um Deus supremo que criou os orixás e lhes deu a incumbência de cuidar deste mundo. Os orixás (e os caboclos) são intermediários indispensáveis para chegar a Ele. No catolicismo popular os santos têm uma posição semelhante, são venerados de fato como divindades menores. Os mestres do candomblé exploraram bem esta analogia. Na verdade, há semelhanças entre as matrizes religiosas africanas de que o candomblé derivou e a religião que lhes foi imposta no Brasil. A rica mitologia e os caprichosos ritos solenes da Igreja Católica foram bem assimilados por gente herdeira de culturas igualmente ricas em mitos e rituais complexos. Uma acomodação era possível e foi buscada com talento. Um sincretismo dessa ordem seria impossível com outras expressões cristãs submetidas a um esforço de Entmythsierung e despojadas em termos de liturgia. A sensibilidade estética dos sacerdotes negros foi uma via de aproximação. Seu diálogo deu-se mais com o catolicismo popular e com as expressões estéticas dos ritos católicos. Da nova fé eles elegeram o que bem queriam, tratando de interpretar-lhe os paradigmas segundo seus próprios códigos. E ao cabo modificaram a seu modo o que lhes era transmitido. Para os pregadores da ICAR, a fé tinha de ser um compromisso exclusivo com a doutrina cristã. Na perspectiva cultural dos negros, de suas civilizações africanas de origem, esse princípio não fazia sentido e eles conseguiram esquivá-lo com muita inteligência, acostumados que estavam a uma lógica inclusiva.23

O culto do candomblé é entusiástico, envolve transe e possessão. Na maioria dos casos requer também uma iniciação que inclui a reclusão do neófito por um certo período. Apenas algumas pessoas eleitas pelos divinos podem encarná-los. Outros são escolhidos para diferentes funções litúrgicas. Os orixás (e caboclos) podem ser propiciados com oferendas (ebós) que não raro incluem sacrifícios de animais.

Por longo tempo o candomblé foi perseguido tenazmente pela polícia. A princípio estigmatizado e desprezado pela sociedade racista, ainda assim logrou impor-se. Atraiu a atenção de artistas e intelectuais, ganhou a adesão de muitos. Mães de santo famosas se tornaram símbolos da Bahia, sacerdotes do axé ganharam destaque no país e no exterior. Terreiros foram tombados como patrimônio nacional. O candomblé por fim passou a ser considerado uma religião e seu generoso contributo para a cultura baiana viu-se reconhecido. Mas as tribulações do povo de santo não cessaram. Voltaram a crescer com a chegada à Bahia da terceira onda neopentecostal.

ÚLTIMOS TOQUES

O panorama religioso da Bahia na atualidade é muito complexo. Em tempo de globalização, não poderia ser diferente. Encontram-se aqui expressões religiosas variadas, graças à contribuição de migrantes de diversas partes do mundo (da Europa, da Ásia, da África, de outros países sulamericanos e da América do Norte), mas graças também a contatos que os baianos estabelecem deambulando e inserindo-se em diferentes redes de comunicação planetária. O neopaganismo que brotou em terras europeias já chegou à Bahia: temos bruxas que se orgulham do título e honram a Wicca. Temos budistas e muçulmanos, judeus ortodoxos, Hare Krishna e New Age. Atuam na Bahia representantes de um neoxamanismo de inspiração andina e cultos indígenas como o do toré e do praiá. Ao mesmo tempo aumenta o número de ateus e de pessoas que não se declaram afiliadas a nenhuma religião. Neste bloco heteróclito podem contar-se agnósticos e gente que se considera livre para transitar entre diversos cultos. É bem difundido aqui o que se pode chamar de pragmatismo religioso: a atitude de quem, embora se diga adepto de uma religião, ou a nenhuma afiliado, recorre a serviços religiosos diversos quando considera que eles lhe podem valer de algum modo, a título de terapia, de ajuda momentânea, ou enquanto meio de melhorar a própria sorte. O compromisso de fidelidade exclusiva a uma doutrina religiosa nem sempre vige e mudar de igreja é uma experiência comum para muitos baianos. Conversões e reconversões se verificam com frequência. Também se dá uma certa inconstância da alma baiana. O catolicismo ainda domina, mas os evangélicos avançam. O neopentecostalismo cresce de forma avassaladora. É o fenômeno marcante, o mais significativo fator de mudança no panorama religioso baiano. Sua propagação tem incrementado um fundamentalismo com frequência violento, encarniçado na campanha contra os cultos de matriz africana. O racismo estrutural da sociedade baiana dá suporte a essa campanha que já chegou às raias do crime e tem feito por merecer a classificação de terrorismo religioso.24 O ódio assim cultivado e a violência que deflagra constituem o aspecto mais chocante do atual panorama religioso da Bahia.

Notas Gerais

1. Na Roma pagã, religio designava um escrúpulo relativo ao campo do sagrado. Apenas em começos de nossa era os cristãos lhe atribuíram uma etimologia duvidosa (ligando-o a religare) e passaram a entendê-lo como significando “reconstituição de um vínculo com Deus”, donde “ligação do fiel com Deus”. Mas ainda no latim medieval religio designava uma devoção particular, uma confraria religiosa, ou sua regra.

A propósito, ver BENVENISTE, E. O vocabulário das instituições indo-europeias. Editora da Unicamp, 1995 vol. II. p. 267. A este autor também se deve a advertência sobre o significado primitivo de religio e sobre a mudança do sentido deste nome por obra dos antigos cristãos.

2. Cf. LARAIA, R. de B. As religiões indígenas: o caso Tupi-Guarani. REVISTA USP, São Paulo, n.67, p. 6-13, setembro/novembro 2005

3. Ver a propósito: VIVEIROS DE CASTRO, E. B. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cossac & Naif, 2002.

4. Ver a propósito CARDOSO, J.O. S. B. Ecos da liberdade: a santidade de Jaguaripe entre os alcances e os limites da da colonização cristã de 1580 a 1595. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Outras “santidades” como eram chamados os movimentos messiânicos indígenas aconteceram na Bahia posteriormente.

5. Num livro famoso, Roland Barthes examinou a linguagem da cultura de massa e mostrou como esta prolifera em mitos de um novo tipo, constituindo, a rigor, uma mitologia pequeno-burguesa. Consulte-se a mais recente (e mais completa) edição brasileira dessa obra: BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro, Difel, 2009. Quanto aos ritos que não se reportam ao campo sagrado há vários estudos antropológicos e historiográficos. Cf. RIVIÈRE, C. Les rites profanes. Paris: Presses Universitaires de France, 1995.

6. São livros sagrados de imenso prestígio os Vedas dos hinduístas, o Avesta dos zoroastrianos, o Tao Te King e muitos outros. Os antigos órficos já tinham suas escrituras sa de“religiões dolivro” é dado aos credos monoteístas de alegada origem abrâmica por uma tradição que reflete os contatos entre esses sistemas. Se tomarmos em um sentido mais amplo a ideia de texto, sem o limitar ao campo da escrita, logo veremos que muitos embasam práticas religiosas, a exemplo do corpus mítico-ritual do Bagre dos Lo Dagaa; ver a propósito GOODY, J. O mito, o ritual e o oral. Petrópolis: Vozes, 2012 (com atenção aos capítulos 6 e 7).

7. Muito se discutiu se o confucionismo seria uma religião, já que não cumpre com esses requisitos. Como Marcel Granet demonstrou, nesse complexo sistema o Soberano Celeste não passa de uma figura literária, uma metáfora; inexiste clero; não há nada parecido com igreja. Tanto para os confucianos como para os taoístas, os únicos seres investidos de sacralidade são os Santos e os Sábios da tradição. A propósito, Granet fala de uma “imanência do sagrado”, expressa numa prática ritualística rigorosamente impessoal. E reconhece essa prática como uma religião

GRANET, M. O pensamento chinês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. A respeito ver também AUGÉ, M. “Religião”. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Casa da Moeda, 1994. vol. 30 p. 175-246.

8. DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Para Durkheim é a “comunidade moral” que chama de “igreja” um traço distintivo importante da esfera religiosa. A seu ver, a magia também implica em crenças e práticas relacionadas com o sagrado, mas a religião é sempre pública: tem uma igreja, enquanto o mago tem clientela. Todavia vários etnólogos observaram que a magia também tem sua “igreja”: ela não opera sem a comunhão de crença de especialistas e clientes na eficácia dos procedimentos mágicos. É hoje consenso entre os cientistas sociais que as fronteiras entre magia e religião se mostram sempre oscilantes, porosas.

9. Uma etimologia muito aceita do termo hebraico quadosh (“sagrado”), posto em relação com o radical triplo qds e com a raiz qd, “separado”, levou muitos peritos a interpretar o sacro, na perspectiva dos hebreus, como intocável, interdito, separado do ordinário, do comum, do profano. Encontrou-se-lhe um paralelo no sentido do termo grego hágios e do verbo áksomai, assim como na ideia do témenos, que designa o lugar santo enquanto um espaço separado (a mesma raiz indo-europeia está presente no verbo heleno témno, “cortar”, e no substantivo latino templum, a que corresponde em grego o nome témenos). Corroborou essa leitura a análise semântica do termo latino sacer, com sua ambiguidade que só a ideia de separação explica. Por um lado, sacer significa “sagrado”, “venerado”, quer se aplique a normas, quer designe objetos; mas por outro também quer dizer “maldito”, “abominável”, “proscrito”. Isso ocorre quando ele denota a consagração aos deuses infernais de uma vítima por esse ato ritualmente excluída (separada) do mundo dos vivos, da sociedade humana. Na Roma Antiga, uma pessoa declarada homo sacer era assim tornada suscetível de eliminação por qualquer um).Ver a propósito AGAMBEM, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007.

10. Cf. OTTO, R. O sagrado. Aspectos irracionais na noção do divino e sua relação como o racional. Petrópolis: Vozes, 2007. ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Também de Mircea Eliade importa consultar a famosa História das Religiões (A History of Religious ideas), em três volumes, publicados entre 1981 e 1988 pela University of Chicago Press.

11. Ver a respeito LANGDOM, E. J. M. Xamanismo no Brasii: novas perspectivas. Florianópolis: Editra da UFSC, 1995.

12. Eis alguns dos elementos mais constantes na gama dos xamanismos: (1) a crença em distintos planos de realidade entre os quais apenas alguns indivíduos especialmente dotados podem transitar; (2) o pressuposto da iniciação / eleição desses indivíduos a partir de uma crise violenta (uma enfermidade ou transtorno grave) que os põe em contato com seres de outros mundos; a ideia de que estes seres, depois de afligi-los (3) fazem-se se seus guias e os capacitam a remover malefícios, identificar a origem de feitiços e retirá-los, assim diagnosticando e curando os enfermos; (4) a vivência do transe (induzido ou não por enteógenos de diferentes tipos) que possibilita a esses especialistas transportar-se a outros planos em que contactam os “espíritos”; (5) o emprego por parte deles de uma parafernália característica; (6) o enunciado, nesse contexto, de discursos com a descrição da viagem a outros mundos; (7) o uso de fármacos vegetais e outros nos procedimentos terapêuticos.

13. A propósito, ver KEHOE, A. Shamans and Religion: An Anthropological Exploration in Critical Thinking. Prospect Heights, 1L: Waveland Press, 2000. Cf. também HULTKRANTZ, Å. “A Definition of Shamanism”. Temenos — Nordic Journal of Comparative Religion, vol. 9, 2012.Cf. HUGH-JONES, S. Shamans, prophets, priests and pastors. In: THOMAS, N.; HUMPHREY, C. (Eds.). Shamanism, history and the state. Ann Arbor: Michigan University Press, 1996. O famoso tratado de Mircea Eliade sobre este assunto permanece um clássico da história das religiões, ainda que tenha sofrido muitas críticas por conta, principalmente, das generalizações apressadas nele contidas. Cf. ELIADE, M. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

14. Ver a propósito TEIXEIRA, F.; MENEZES, R. Religiões em movimento. O censo de 2010. Petrópolis: Vozes, 2013.

15. Cf. AZEVEDO, T. Igreja e Estado em tensão e crise. São Paulo: Ática, 1978.

16. Ver CASALI, A. Elite intelectual e a restauração da igreja. Petrópolis: Vozes, 1985.

17. Ver a respeito ALVES, S. D. S. A Igreja Católica na Bahia: fé e política. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Salvador: UFBA, 2003. Como lembra a autora, uma atitude do Cardeal da Silva que o tornou muito impopular foi uma concessão que ele fez ao governo quando concordou com a derrubada da Sé primacial a fim de facilitar a implantação de trilhos e a passagem de bondes elétricos no local.

18. Ver a respeito TAVARES, L. H. D. História da Bahia. Salvador: Edufba, 2006. p. 378-413.

19. Na verdade, a Assembleia de Deus vem a ser um conjunto um tanto instável de mais de 140 agrupamentos de igrejas autônomas, vagamente associadas. Nascida nos Estados Unidos em começos do século passado, ela teve logo imensa difusão, tornando-se a maior instituição neopentecostal do mundo. No Brasil ela implantou-se inicialmente em Belém do Pará, em 1910. Embora bem mais antiga e apesar de chegada ao nordeste bem antes das congêneres neopentecostais, ela se amoldou ao espírito das novas igrejas, cuja influência sofreu e sofre: pode-se dizer que ela surfou na “terceira onda” neopentecostal. A Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia – CEADEB tem logrado grande êxito e repercussão, mas também se registram no seu interior sérias disputas, que não raro resultam em cisão.

20. PEREIRA, Cláudio Luis. Línguas de fogo, rios de água viva – A experiência religiosa pentecostal em Salvador. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 1995. A pesquisa que deu origem a essa dissertação foi iniciada em 1990.

21. Trata-se de uma expressão consagrada: quem é adepto do candomblé pode afirmá-lo dizendo: “sou do axé” . A palavra axé tem vários significados: designa a força mística, o poder sagrado dos orixás, a energia divina que movimenta o mundo, mas também se emprega com o sentido de “templo dos orixás (terreiro) ou ainda como designativo de seu culto. O termo “candomblecistas” é pouco usual no meio do candomblé.

22. Ao contrário do que sucede na umbanda e nos centros espíritas, no candomblé os defuntos “comuns”, que não se equiparam aos veneráveis antepassados, não devem ser invocados, mas sim despachados para que sigam seu caminho em paz e não perturbem os vivos.

23. Hoje ainda se entende mal o sincretismo resultante dupla leitura criativa em que os mestres do candomblé se empenharam, ajustando ao novo espaço histórico o seu acervo e simultaneamente reconstruindo a seu modo o cristianismo imposto, com uma liberdade um tanto irônica. É certo que eles eludiam a perseguição encobrindo com a devoção aos santos católicos o culto aos orixás, mas não ficavam nisso: impunham seu modo próprio de celebrar e instilavam seu sentimento religioso no espaço cristão. Os seus evangelizadores, cegos pelo etnocentrismo, não o perceberam. Com uma visão muito acanhada, lamentavam a incapacidade dos negros de entender a doutrina cristã e viam na sua atitude um puro desentendimento.

24. Ver a propósito PECHINÉ, S. L’intolérance religieuse à Salvador de Bahia. Le face-à-face des églises néopentecôtistes et des religions de matrice africaine. École de Hautes Études em Sciences Sociales, Centre des Études Interdisciplinares des Faits Religieux; Programa de Pós- Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, 2012. SERRA, O. “Os afro-brasileiros sob ataque”. Os olhos negros do Brasil. Salvador, Edufba, 2014 p. 71-96. Recentemente o Ministério Público do Estado da Bahia passou a computar as denúncias de casos de intolerância religiosa no Estado, envolvendo ataques de neopentecostais a terreiros e pessoas “do axé”. A ong Koinonia, Presença e Serviços também têm se empenhado nessa tentativa de registro em todo o Brasil, mas todos reconhecem que os cômputos são precários, visto como nem todos os atos são denunciados. É consenso que as autoridades policiais deixam de acolher denúncias de intolerância religiosa e na prática as desestimulam. Já ocorreram aqui assassinatos de sacerdotes e expulsão de comunidades do candomblé por parte do crime organizado. Ainda não se constatou na Bahia a atuação de facções como Bonde de Jesus e Bandidos de Cristo, que se deixem evangélicas e aterrorizam o povo de santo do Rio de Janeiro, mas a violência religiosa já assusta os baianos. O MPE-BA, A Defensoria Pública e a OAB se mobilizam para combatê-la; o povo de santo também procura criar seus núcleos de resistência. Mas o surto está longe de ser contido. O MPE-BA verificou que nos últimos anos têm aumentado na Bahia os delitos dessa natureza.

Imagem de capa: Festa de Santa Barbara

Festa de Santa Barbara 2014. Foto: Elói Corrêa/GOVBA.

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