Tema: Esportes
Por Paulinho Leandro Jornalista profissional (DRT.1.214-BA) há 37 anos, professor doutor em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia, pesquisador de torcida de 'futilbol' e MsC em Comunicação e Cultura Contemporâneas, com dissertação sobre 'o jornalista e o cartola'. Além de produzir conteúdo em redações de jornais, incessantemente, participa diretamente da formação de grande parte dos jornalistas atualmente em atividade na Bahia.

BOCA DO RIO E DOS BABAS

O Campo do Marão ganhou trave, vestiário, arquibancada e iluminação. Uma boa vitória do futebol de bairros, atendendo aos craques da Boca do Rio, um dos locais de Salvador onde a bola rola com mais paixão.

O nome é referência ao presidente da Liga de Futebol da Boca do Rio, Luiz Mário Correia, organizador de um campeonato com 32 times, entre os quais alguns de alcance internacional, como o Ajax de Amsterdam e o argentino Boca Juniors.

A liga, bem cuidada pelo dirigente Marão, mostra, com suas quatro décadas de gols e alegria, como a Bahia é um dos estados primordiais para fecundar no povo este amor incontrolável.

A Boca do Rio é localidade essencial nesta história, pois sem ela, o futebol de Salvador não poderia ser contado da mesma maneira, dada a dedicação de grande parte de seus 90 mil moradores à arte de bater um bom baba.

Ali, o Esporte Clube Bahia fixou sua sede de praia, antes de ser demolida, com seu convívio agradável, marcado pela religiosidade, com o devido zelo a uma imagem em tamanho natural de Cosme e Damião, muito bem cuidada pelo massagista Alemão.

Amor tão intenso cujo sacrifício de carregar as traves para fixá-las na areia da praia torna-se um prazer para os moradores do bairro, ao tornar o baba um culto à alegria de viver, em confrontos à beira-mar, em clássicos como Boca Juniors x River Plate.

O futebol da Boca do Rio, bem representado no Campo do Marão, é também uma demonstração viva da disputa entre as ligas de bairro, desde os primórdios, quando o filho da aristocracia branca e rica, Zuza Ferreira, trouxe as primeiras bolas de Londres.

O marco fundador de 28 de outubro de 1901 tem Zuza como herói do futebol da cidade, pois a família teria enviado o menino peralta para a Inglaterra, dona do mundo, com o objetivo de melhor educá-lo.

Foi pior a emenda pois o rapaz, inclinado a curtir as pândegas e laúzas da vida, trouxe de volta na bagagem, além das bolas, o primeiro livro de regras, compartilhado com os amigos para aprenderem como se praticava aquele jogo esquisito, mas divertido.

À esta época, a Boca do Rio era apenas um lugar ermo, com um ou outro pescador nômade, mas o passar das décadas empurrou para o bairro parte dos sem-teto da cidade, dividindo curiosamente os logradouros com a classe média em situação de veraneio.

A liga oficial prevalecente, chamada hoje de Federação, é a escolhida da elite, mas a cidade teve e ainda tem diversas organizações futebolísticas, desde a Boa Viagem e o Largo dos Paranhos, passando por Brotas, o Largo do Ouro, na Liberdade e mil outras.

Os babas da Boca do Rio, no Marão e nas praias, cresceu criativo, à margem, mas com a qualidade técnica e o bom convívio refletido com igual intensidade nas quadras situadas próximas à barraca de coco de seu Gil – valorosa instituição onde situa-se o sagrado pito para encher as bolas.

Tão preciosa é a região a ponto de merecer do professor e antropólogo Jeferson Bacelar um dedicado estudo, publicado primeiro, em 1989, pela Fundação Casa de Jorge Amado, com o nome-síntese Gingas e nós: o jogo do lazer na Bahia.

Presenteou Bacelar a comunidade esportiva da Boca do Rio e de toda a Bahia, com uma segunda edição, lançada pela coleção É futebol, da Editora da Universidade Federal da Bahia.

Demonstrou o professor como os babas da Boca do Rio e da cidade em geral nos fazem sentir mais baianos e brasileiros, tomando como referência a conquista de um território tomado, pela via da bola, dos supostos donos do mundo.

O Campo do Marão, os babas de praia, com juiz e tudo, os clássicos disputados nas quadras, todo este conjunto, fazem da Boca do Rio, um lugar especial para os futebolistas da Bahia contemporânea. 

 

CLÉBER, O ARTILHEIRO ENCANTADO

- Minha mãe, eu vou ser jogador. 

Desde menino, Cléber já sabia seu encaixe no universo. Sua vida seria boa, se fosse com a bola nos pés. Assim, sem ter consciência clara do significado de seu talento, desenvolveu, por intuição, sua contribuição para a harmonia do cosmo.

Caso tivesse Cléber seguido o caminho de tantos outros vizinhos de sua idade, no bairro do Engenho Velho da Federação, antigo quilombo de Salvador, e poderia ter se tornado caixa de supermercado, operador de telemarketing ou alguma outra atividade para sobreviver - quem sabe, uma opção ilegal.

Não são poucos os jovens da localidade servindo a organizações clandestinas, cujas alianças com corporações sociais legalizadas, resultam, eventualmente, em ações de assassinato, tráfico de psicoativos ou controle de prostituição, entre outros crimes.

Cléber seguiu seu daimon (talento) e teimou, teimou, teimou, até conseguir ser reconhecido no Ceará Sporting, depois de colecionar títulos de campeão baiano da segunda divisão.

Antes de Cléber deixar Salvador, o Vitória teve a chance de conquistar o futebol do afro-brasileiro esguio, sempre bem colocado na área, mas como não teve o padrinho de um agente Fifa ou empresário influente, precisou seguir viagem.

Seu rumo foi a terra do padim pade Ciço – Padre Cícero –, onde fixou residência no Juazeiro, antes de seguir seu périplo pelo Barbalha, Caucaia e Guarany de Sobral, até ganhar a posição e a confiança da torcida do Vovô – como o Ceará é mais conhecido, pela longeva idade, fundado em 1914.

No Ceará, devolveu ao Vitória a ingratidão de não ter ficado mais perto da família, em sua querida Salvador. Não é o caso de Cléber se dizer rancoroso, mas a eliminação do time baiano na Copa do Nordeste só não alegrou mais em relação à conquista do título da competição.

Foi o menino nascido e criado no bairro dos candomblés jeje – origem no Daomé, África – quem assinou o golpe de misericórdia na finalíssima contra o Bahia, ao marcar o gol decisivo do título regional.

Cobiçado por clubes de regiões mais desenvolvidas, por um viés do modelo econômico vigente, como o Grêmio Porto-alegrense, Cléber exercitou uma paciência zen, na mesma proporção de seus chutes, ora colocados, fora do alcance do goleiro, ora potentes, as chamadas bombas, sem chance de defesa.

O treino de paciência, perto de uma perspectiva espiritual, tão desenvolvida no Engenho Velho da Federação, pode ser verificada na espera pela adaptação da sociedade devido à pandemia provocada pela disseminação do coronavírus.

Foi em março, quando a Terra parou, a sua chegada a Fortaleza, e somente quatro meses depois, seguindo as recomendações para a arriscada e temida volta do futebol, o jovem baiano começou a balançar as redes e ganhar espaço no mundo da bola.

Não se sabe ainda quais as intenções das moiras fiandeiras do destino – entidade da mitologia grega capazes de tecer o futuro –, mas ao tomar nos pés, pela dignidade moral do trabalho, a decisão de fazer a hora, Cléber já se pode considerar vencedor.

Este herói de 1,95m tem na perseverança e no talento duas bênçãos provavelmente transmitidas por algum encantado dos candomblés do Engenho Velho, em manifestação mantida em sigilo, como convém aos melhores ilês axés (casas de força) do bairro.

A confiança em si mesmo, além da base familiar, fortalecida na amizade do irmão Caio, pode ter tido origem na materialidade do serviço à Marinha do Brasil, pois na Arma, aprendeu a importância da disciplina e da hierarquia, fatores decisivos para o êxito no futebol.

- Eu tive que servir e até joguei pela seleção da Marinha, lembra, quando procurado pela Imprensa a falar sobre a mistura do serviço obrigatório com sua devoção pela bola.

Agora, é verificar se os encantados, junto aos efeitos positivos do bom convívio com a família e a Marinha, vão seguir guiando a categoria e a potência de seus chutes e cabeceios de Cléber para levar ao primeiro título nacional o valoroso Vovô de Fortaleza.

 

VERBETE 3-A

O Engenho Velho da Federação é um bairro nascido de um quilombo, cuja principal e tortuosa rua faz uma rara homenagem a um jogador de futebol: Apolinário Santana, mais conhecido por Popó Baiano, tido como marco fundador da idolatria pela bola na Salvador dos anos 1920.

Para quem entra no bairro pela Avenida Cardeal da Silva, o susto não é pequeno, pois torna-se aula obrigatória de ética no trânsito, o convívio de motoristas em mão e contramão, pois a rua estreita demais exige cálculos rápidos de física e a maior boa vontade dos motoristas.

Nas laterais da rua principal, descem as vilas, chamadas de avenidas em um exercício beirando à ironia, tal o desconforto de casebres alinhados em parede-meia, uma denúncia viva dos efeitos da pós-abolição, em gerações de excluídos.

Chegando ao final da rua, a estátua de Mãe Runhó, uma das principais líderes religiosas do bairro-quilombo, parece querer dar as boas-vindas mas também vigiar o perigo de quem chega sem leveza no coração para passar pelo lugar sagrado de tantas lutas, vencidas e perdidas. 

Recentemente enlutado pela perda do pesquisador e antropólogo Jaime Sodré, o terreiro do Bogum fica logo à esquerda, descendo a ladeira Manoel do Bonfim, em novo trecho urbanizado de forma descuidada, mão e contramão quase rentes no declive exagerado, denunciando o corte malfeito, apartando o galpão principal do terreiro de sua rica flora, destruída por tratores e escavadeiras.

Hoje, liderada por Zailda Iracema de Melo, conhecida por Mãe Índia, o Bogum tem sua história mais bem registrada pelo professor Ordep Serra, mas nem ele é capaz de dizer com precisão quando começaram a juntar-se os escravos fugidos no local, como forma de resistir militar, religiosa e culturalmente ao rancor dos capitães do mato.

Outros terreiros, de nações diversas, coabitam pacificamente no local onde vive a família de Cléber, em uma rara área de resistência plena à ocupação dos alto-falantes de seitas neopentecostais dispostas a exterminar outras religiões e formas de culto.

Não se pode, obviamente, garantir, mas os antepassados de Cléber, por sua altura, bravura e obstinação, provavelmente foram guerreiros e sofreram as torturas e efeitos do genocídio dos senhores de escravos, em evidência ancestral encerrada nos segredos do futebol mágico deste jovem baiano talentoso quanto convicto de suas obrigações de ídolo da torcida do Ceará.

 

UBÁ-‘Y-TABA, A TERRA DAS CANOAS DOS TUPINAMBÁS 

Não é de hoje o talento do município de Ubaitaba para a arte de andar em canoas. Os tupinambás, massacrados pelos invasores portugueses, já chamavam aquele pedaço de mundo dotado de natureza bela e farta de algo próximo de cidade das canoas.

Ubá-‘y-taba, portanto, é um objeto de pesquisa a ser melhor investigado, devido ao espontâneo surgimento de revelações da canoagem, esporte nascido da prática indígena de incontáveis séculos, muito antes da invasão das caravelas dos genocidas.

Talvez por este traço ancestral, no perfil de Ubá-‘y-taba, possa soar estranho a construção de um centro de treinamento, uma forcinha a mais para fortalecer a vocação do lugar, herdada de tribos tão antigas quanto o murmúrio longínquo do tempo.

O centro vai acolher canoístas entre 8 e 18 anos de toda a região do Sul da Bahia, tomando como referência mais recente os nomes mundialmente reconhecidos de talentos como Isaquias Queiroz e Erlon de Souza.

Este é o segundo conjunto de equipamentos para a canoagem da cidade, com garagem para barcos, sala de musculação, refeitório, copa, almoxarifado, área de serviço, salas da administração, de professores e de aula, além de ancoradouro flutuante.

Mesmo sem estrutura alguma, anteriormente, do rio de Contas, em sua sinuosa travessia pela cidade, saíram equipes de campeões, como se já nascessem os atletas da região prontos para interagir os corpos com barcos e remos.

Intimamente relacionada à cultura do cacau, Ubaitaba tem menos de 20 mil habitantes, de acordo com estimativa mais recente (2018), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A canoa é inseparável do modo de ser do cidadão, pois parte da mobilidade entre a sede do município, chamado Itapira, até 1933, e os distritos de Piraúna e Faisqueira, é realizada há séculos pelo veículo, em ambiente fluvial, sem poluir e a custo baixo, além de servir para conseguir alimento pela pescaria. 

Apesar do sucesso recente de Isaquias e Erlon, o povo da cidade não esquece de Jefferson Lacerda, representante de Ubaitaba nos Jogos Olímpicos de Barcelona, na Espanha, em 1992.

Depois de deixar de competir, ele passou a ser um mestre do ofício e aprimorou em Cuba seu talento para buscar a harmonia entre a canoa e o rio. Lacerda tornou-se o professor de equipes de canoístas e deu o primeiro remo a Isaquias.

No Rio-2016, Isaquias ganhou três medalhas de ouro e uma de prata, misturando realidade e lenda, por seu desempenho incomum e histórico na lagoa onde foram disputadas as provas.

Agora, com todo o talento incessante de revelações, os dois centros de treinamento, não só para Ubaitaba, mas também as cidades do entorno, vão fortalecer o tônus dos braços e pernas de seus canoístas, visando dar novas alegrias à cidade.

O bom exemplo de convívio com a natureza e as medalhas singra o rio, junto com a certeza de terem os ubaitabenses nascido para o talento de alegrar-se com a suave e ligeira navegação, capaz de unir a todos os moradores e orgulhar a Bahia contemporânea.

Desenvolvido por Diêgo Pessoa | Forma e Conteúdo