Tema: Literatura
Por Mirella Márcia Longo Vieira Lima Professora Titular da Universidade Federal da Bahia. Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada (USP). Pesquisadora do CNPq. Escritora.

LITERATURA NA BAHIA CONTEMPORÂNEA

Embora a organicidade que Antônio Candido aliou à sua visão de sistema literário esteja hoje bastante esgarçada, permanece a base, contemplando as relações entre autores, obras e público. Pensar na literatura feita na Bahia contemporânea implica refletir acerca dessas relações, surpreender, num quadro extremamente plural e multifacetado, um caráter não aleatório. Afinal, se outros não existissem, os escritores baianos da atualidade teriam pelo menos um ponto em comum. Todos são desafiados a assumir posicionamentos ante um legado de vulto. Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Ildásio Tavares, Myriam Fraga são vozes fortes e audíveis no presente. Para narrar ou cantar no espaço onde soam essas vozes, o escritor precisa estar disposto ao diálogo. A intenção de evidenciar a existência de um campo contemporâneo em cujo interior as obras articulam-se, dialogando com os baianos do passado, com a cultura em geral, com leitores e também entre si exigia, como passo preliminar, a definição de uma estratégia de escrita. E assim foi feito. Seriam apresentadas obras literárias supostamente capazes de sugerir linhas de força. Surgiu então o problema dos critérios que guiariam a escolha das escritas nucleares. Pareceu mais rentável privilegiar aquelas que facilitassem a construção da própria exposição. Em acordo com o pressuposto da presença de relações não aleatórias, foram selecionados, entre muitas opções, textos literários que evidenciam tanto o caráter plural do campo, quanto a sua natureza não caótica. Além disso, como costuma acontecer em qualquer seleção, o recorte sofreu interferência do gosto pessoal e das sensações de afinidade.

 

PROSA. O NOME DA TUA CARNE: TERRA.1

Escrito por Itamar Vieira Júnior, Torto Arado conquistou em 2018 o Prêmio LeYa, o maior concedido a um romance inédito em língua portuguesa. Nascido em Salvador, em 1979, o autor obteve, na Universidade Federal da Bahia, o título de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos. Sua pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro confere lastro sólido à trama. Transcorrida na Chapada Diamantina, ela fala sobre um grupo de trabalhadores descendentes de escravizados, destacando seus ritos e suas lutas por sobrevivência, trabalho e posse da terra. Como propôs Machado de Assis, em 1873, o escritor mergulha em traços locais e neles apreende tensões humanas que extrapolam fronteiras. Presidido por Manuel Alegre, o júri do Prêmio LeYa observou que, tendo o seu ponto de partida em uma realidade concreta, a narrativa encontra um plano alegórico que ganha contornos universais.

Morando na Fazenda Água Negra durante muitos anos, a família de Zeca Chapéu Grande identifica-se com a terra onde vive e trabalha em regime de servidão. O foco recai principalmente sobre duas filhas de Zeca. Na mala da avó, Bibiana e Belonísia encontram uma faca com cabo de marfim e provocam um acidente. Ambas se ferem, mas apenas uma delas tem a língua decepada. Passando a ter dificuldade de fala, a menina prefere emudecer. Desenvolvendo profunda captação de tudo que a cerca, a parte silenciada depende da outra, para estabelecer uma comunicação com o mundo. Essa aliança fraterna será, todavia, rompida, porque, embora compartilhem do mesmo contexto violento e opressor, as duas irmãs têm atitudes diversas. Bibiana rebela-se e resolve deixar o meio rural, esperando achar, na cidade, uma via de libertação. Atada à terra que abriga a sua avó e imersa no caldo de cultura que recebeu dos ancestrais, Belonísia não aceita o afastamento da irmã e a consequente quebra do pacto entre elas.

Na tensão existente entre ligação à terra e tentação de migrar, repercute um aspecto que soa alto na literatura brasileira, pelo menos desde Os Sertões (1902).  Euclides viu no apego do sertanejo a seu meio uma força fatídica que o levava a remigrar, aprisionando-o2. Respondendo a essa visão fatalista, Graciliano Ramos situou, nos momentos finais de Vidas Secas, um casal de sertanejos movendo-se para a cidade desconhecida, em busca de uma condição humana3. Itamar Vieira Júnior retoma e revigora o debate. De alguma maneira, a fuga de Bibiana assemelha-se à do casal acossado pela seca, pelo soldado amarelo e pela exploração. Por outro lado, o livro publicado em 2019 traz nova perspectiva. Obtendo informação, diploma de professora, consciência da sua condição de quilombola, Bibiana compreende que as relações de trabalho no meio urbano também são injustas. Assim, ela remigra – não para repetir o ciclo observado por Euclides – mas, para fazer com que a sua gente passe a clamar por direitos e também para tentar recompor o pacto com a irmã. No ínterim, Belonísia, mergulhada em revolta, não sucumbe. Longe das letras e das leis, recorre a recursos de defesa usados por suas ancestrais. São dois modos de responder à opressão. A narrativa parece sugerir que, no Brasil contemporâneo, ambos continuam imprescindíveis para compor as estratégias de sobrevivência e de afirmação de territorialidades culturais.  Se o desfecho do romance agrada ao leitor que adere afetivamente às duas irmãs, ele também dá conta da tragédia brasileira. Afinal, tendo experimentado políticas direcionadas à diminuição do seu mal-estar social, o Brasil não as concretizou com suficiência e sustentabilidade impeditivas do confronto violento apresentado como um Rio de sangue, título dado ao derradeiro capítulo do romance.

Em seu núcleo ficcional – aliança entre uma irmã emudecida e a outra, que lhe empresta voz – Torto Arado reencena e, simultaneamente, põe em tensão um traço importante do projeto cultural brasileiro. Trata-se da intenção de vocalizar demandas e desejos vindos dos setores silenciados numa sociedade tragicamente desigual. Maximamente enfatizada nos anos 30, a proposta foi posta em xeque desde as últimas décadas do século passado, quando novas vozes irromperam no espaço público, reclamando seus direitos. A autoimagem do intelectual brasileiro pareceu ter sofrido, desde então, um ponto de clivagem. Segundo Ismail Xavier, o cineasta baiano Glauber Rocha já trouxera no filme Terra em transe (1967) a reflexão sobre o fracasso. No centro dessa reflexão, Xavier aponta o reconhecimento de uma alteridade que não correspondia à imagem do povo solicitada pela teoria da revolução4. Dez anos depois, Clarice Lispector apresentou a figura de um escritor angustiado e relutante ante a tarefa de inventar uma nordestina destinada a perecer no Rio de Janeiro. Seguindo essa via, a ficção nacional mais recente tem sido pródiga em tramas protagonizadas por escritores da classe média, muitos deles imersos em crises que contemplam considerações acerca do esvaziamento de seu papel social. O romance de Itamar Vieira Júnior toma distância em relação a essas tramas. Ele não hesita em enfrentar o desafio de dar voz ao outro; em seu caso, radicalmente outro, já que as suas narradoras são mulheres.

 

 

Por sua especial capacidade de evocar questões importantes na cultura do país - em diálogo com antecessores baianos também interessados nas lutas por terra e trabalho, a exemplo de Jorge Amado, Herberto Salles, Adonias Filho, Antônio Torres; e principalmente por revitalizar debates marcantes, situando-os no contexto do Brasil contemporâneo, Itamar Vieira Júnior evidencia maturidade como escritor. Por isso, sua voz é aqui tomada como metonímia de outras que se constelam em torno dos problemas enfrentados no meio rural e também em torno da riqueza de caminhos que suas culturas oferecem à sondagem de substâncias humanas sem local e sem data. Para evidenciar a amplitude dessa constelação, são aqui mencionados mais dois romances.

Ambientado na área rural e voltado às relações entre mulheres, Inúteis luas obscenas, de Hélio Pólvora, foi publicado pela editora Casarão do Verbo. Nascido na cidade de Itabuna em 1928, Pólvora foi sempre apaixonado pelo conto, devotando-lhe fidelidade durante largo período da sua trajetória intelectual. O apuro das suas composições trai cuidadosa leitura de escritores que teorizaram sobre a narrativa curta. Em Inúteis Luas Obscenas - finalista do Prêmio São Paulo 2011/ categoria de romancista estreante - o poder narrativo é distribuído entre os quatro habitantes de uma mesma casa: O Surdo, Jonas, Regina e Celina. O Surdo tem uma vida pacata, até que o seu filho Jonas foge com Celina, filha do poderoso Coronel Castro Guerra, sendo, por isso, emasculado. A tensão cresce, quando Celina passa a lançar a sua sedução na direção do sogro; o que desperta os ciúmes de Jonas e a ira da cunhada. Inimigas cruéis, Regina e Celina oferecem desfechos diversos para o enredo. Comentando o romance de Pólvora, Nelson de Oliveira destaca a admiração que o autor baiano dedicou a Graciliano Ramos e ao americano William Faulkner. Oliveira sustenta que Pólvora teria combinado a economia discursiva do primeiro e a exuberância expressionista do segundo5. Certamente, o leitor é arrastado à captação da densidade passional das personagens. Como Itamar Vieira Júnior, Hélio Pólvora focaliza dificuldade de comunicação, criando um surdo; ou um homem que, precisando fingir surdez, sonha com a existência de um amigo cego e de um amigo mudo. Também como Vieira Júnior, ele destaca, no Brasil profundo e eivado de arcaísmos, a subjetividade de mulheres que dinamizam a trama. A admiração dos dois escritores baianos por Guimarães Rosa é evidente, tanto na concepção do sertão como espelho do mundo interior, como na absorção de uma poesia emanada da linguagem oral. O Surdo, aliás, chama-se Guimarães.

Indo além da homenagem sutil, Aleilton Fonseca – nascido, em 1959,  na cidade de Itamirim, hoje Firmino Alves – publicou o romance Nhô Guimarães. Era então 2006, ano em que se comemoravam os 50 anos de Grande Sertão: Veredas.  Fonseca põe em cena uma octogenária sertaneja, narrando eventos evocativos da vida e da obra de Guimarães Rosa. Levando para os palcos a figura da anciã ansiosa por um reencontro com o homem culto que viajava pelos sertões, o Projeto Nhô Guimarães pelo Sertão, do Núcleo Criaturas Cênicas de Salvador, foi um dos vencedores do Programa BNB de Literatura. Superpondo discursos de diversas naturezas – biografia, ensaio e ficção - a história originalmente integrava Desterro dos Mortos (2001), um livro de contos.  Trata-se de exercício estilístico refinado e destinado a conquistar o público, muito especialmente o público acadêmico. Doutor em Letras pela USP, pesquisador e professor de literatura na Universidade Estadual de Feira de Santana, Aleilton Fonseca ajusta-se perfeitamente à categoria dos intelectuais que agregam, à própria ficção, dimensões críticas e teóricas. A figura do escritor que, exercendo outras funções, se projeta em sua própria obra como pensador da literatura desperta, hoje, interesse crescente, em todas as universidades baianas. A vertente de pesquisa na área de Letras partiu de um grupo liderado por Evelina Hoisel, professora e pesquisadora da UFBA. Nesta primeira instituição e também na Academia de Letras da Bahia, que presidiu entre 2016 e 2018, Hoisel incentivou eventos em torno de escritores cujas ficções são portadoras de dimensões teóricas, críticas, biográficas e autobiográficas. Alcançando um momento de força em Nhô Guimarães, tais dimensões não se ausentam em outros trabalhos de Aleilton Fonseca, autor de romances, contos, poemas e ensaios.

 

CHOQUE ENTRE O AZUL E O CACHO DE ACÁCIAS: VIDA URBANA

O mar, de Itapuã a São Tomé de Paripe, envolve a cidade com seu abraço caloroso, acolhe-a como quem diz: não tema. Dessa percepção, Marcus Vinicius Rodrigues extrai o título de seu livro publicado pela editora baiana Caramurê, em 2019: O mar que nos abraça. Admitindo um “nós”, a imagem-síntese trai anseio de integração. Todavia, as cinco narrativas exploram uma condição fragmentada. O abraço do mar alude poeticamente ao sonho feliz de cidade, utopia de uma identidade única e apta a superar as diferenças entre as várias áreas de Salvador. Se, na noite do Rio Vermelho – núcleo boêmio - todos os encontros parecem possíveis, é preciso lembrar, quando amanhece, alguns abismos. Assim, Tom, um negro que habita o Engenho Velho da Federação, vigia com cautela os próprios gestos entre os companheiros de banda, moradores de edifícios envidraçados no Morro Ipiranga. Axial no livro, o movimento do fragmento em direção à totalidade invade o íntimo das personagens. São moços em formação que, enfrentando cisões internas e obstáculos externos, têm ânsia de superá-los, idealizando maturidade, liberdade, cumplicidade e amor. As narrativas transcorrem em diferentes bairros, cada um com sua própria alma e seu específico modo de impor provações. Talvez seja possível considerar essas travessias como processos iniciatórios. Para vencer uma disputa na praia do Porto da Barra, Nil precisa ter óculos de natação. Necessário que chegue à Praça Municipal, que desça o Elevador Lacerda e alcance uma loja de preço acessível, localizada na cidade baixa. A via é longa, povoada pelo preconceito com a sua corte de fantasmas. Antes de ter a visão potencializada pelos óculos e pela experiência, Nil conhecerá engodo, usurpação e uma justiça feita por socos e empurrões. Rai, moça da Liberdade, anda em direção à delícia de ser quem é. Isso exige desconstrução dos padrões de beleza que a oprimem, desmembramento de estereótipos impeditivos de sua relação livre com o mar e com o mundo. Na história de Eri, jovem moradora de Paripe e apaixonada pelo colega da Ilha de Maré, ecoa o mito de Hera, a sacerdotisa de Afrodite conquistada  por Leandro, amante que atravessa a escuridão do mar noturno, guiado por sua luz. Mas, se o mito tem desfecho trágico, a trama de Marcus Vinicius Rodrigues termina num impasse. Antes de pisar as areias proibidas de Enema para encontrar o amado, Eri, a Hera baiana, deverá esquecer o paraíso doméstico e reconhecer que a vida adulta exige a intromissão de estranhos. Para Teo, o mar é cumplicidade, encontro com alguém que entenda o que ele apenas insinua. No entanto, o gozo dessa complementação oferecida pelo outro exige o reconhecimento das próprias fraturas.

Marcus Vinicius Rodrigues é natural de Ilhéus, nascido em 1968. Conquistou, em 2016, o Prêmio Nacional da Academia de Letras da Bahia, com o livro de contos A eternidade da maçã. Por aliar a estrutura do conto à leveza da crônica, os textos contidos em O Mar que nos abraça cumprem, neste texto, a função de recordar algumas trilhas importantes na literatura baiana. Uma delas é povoada por observadores argutos da vida em Salvador. Lulu Parola (Aloísio de Carvalho), Hildegardes Vianna, Guido Guerra, João Ubaldo Ribeiro são apenas alguns nomes de um amplo conjunto.  Outra marca forte vem do grifo posto na visão do mar, quase onipresente na capital da Bahia.  Notabilizada pelas canções de Caymmi, essa visão marinha alimentou a imaginação do contista Vasconcelos Maia e, mais recentemente, do escritor Carlos Ribeiro que, em seu livro de estreia – Já vai longe o tempo das baleias, debruçou-se sobre o cotidiano de Itapuã nas décadas de 60 e 70.

Reconhecendo o fracionamento da cidade, os textos que compõem O Mar que nos abraça comtemplam, contudo, uma totalidade utópica sediada no desejo. Bem diverso é o princípio construtivo de Margens à Margem, que veio à luz um ano antes, com autoria de Claudius Portugal. Nesse caso, a escrita mantém-se distante de qualquer idealização, quer em relação à cidade, quer em relação à nação. Reunindo quatro livros – Margens à margem, postema, terceiro sinal e NÓSDOIS - a publicação absorve escritas de naturezas diversas: citações, e-mails, retalhos de conversas, pensamentos, lembranças, confidências, diálogos, reportagens e versos. Ao abrir o compêndio com o selo baiano da P55, o leitor defronta-se com um mapa-múndi hidrográfico, sem divisões nacionais. Na página seguinte, lê-se: Um rio não tem pátria. Embora não haja renúncia à exposição dos antagonismos sociais violentos que marcam o contexto brasileiro, o mosaico de citações vindas da cultura erudita, da cultura pop, do cinema, da televisão, mais a paródia aos discursos da política e da imprensa assinalam a sintonia com uma contemporaneidade sem fronteiras e evocada primordialmente pela descontinuidade da forma. Assimilado na fatura, o colapso das utopias, que as sínteses tendem a sugerir, faz-se acompanhar pela adesão à vitalidade contida em cada fragmento e ao enigma guardado em cada instante. Envolvendo um casal de idosos dolorosamente marcados pela morte do filho único, a primeira história comenta a suspensão do amanhã. Ecoando uma trama de Edward Albee – Quem tem medo de Virginia Woolf? (1962) - a história trai, contudo, um elogio à existência e às sensações que ela oferece; o que não ocorre na perspectiva do dramaturgo americano.

Nascido em Salvador em 1951, Claudius Portugal tem intensa participação na vida cultural da sua cidade, onde atua como escritor, editor, ensaísta, jornalista, organizador de exposições, dramaturgo. Como coordenador editorial da Fundação Casa de Jorge Amado, foi responsável pela publicação da Revista Exu. Projetadas pelo autor de Margens à Margem, a série Comparsas (livros feitos por escritores e artistas plásticos, em parceria) e a  Coleção Cartas Baianas, da P55 Edições, contam com a sua coordenação.

 

POESIA: O FOGO DAS COISAS QUE SÃO

Em 2018, a editora Caramurê lançou Mulheres. Poetas e Baianas. Reunindo vinte escritoras, o livro ilustra a vitalidade da poesia produzida na Bahia atual. Contemplando poéticas marcantes no Brasil das últimas décadas, o conjunto de vozes também as renova, operando acréscimos. São mulheres baianas das mais diversas cidades, idades e profissões, encontrando-se na prática do verso. Buscando abrangência, a publicação engloba a veterana Myriam Fraga, reconhecida nacional e internacionalmente, e também autoras que estrearam há pouco tempo.  Alguns estilos surpreendem. Fazendo densa reflexão sobre o próprio poema, Karina Rabinovitz  exibe inusitados jogos de palavras e domínio de ritmo: este meu rap no fundo é um soneto/ como este agora é branco e também preto/ ... // este soneto no fundo é um rap/ não há conceitos, só um grande gap/. Se os temas coincidem aos da lírica tradicional, os tratamentos literários trazem surpresas. É o que pode ser observado em Luto, elegia escrita por Kátia Borges: Não haverá outro dezembro/ como aquele em que beijei meu pai/ pela última vez, a testa fria/ de um homem morto./ Que ontem foi aquele/ em que, juntos,/ enfeitamos a árvore?/ O silêncio é de ouro, me dizia./ Sinto em mim cada quilate. Questões políticas e sociais estão presentes. Lívia Natália - que recebeu o Prêmio Banco Capital de Poesia, em 2010, e o Prêmio da APCA de Melhor Livro de Poesia do ano de 2017 – dedica a Dilma Roussef o poema 180, referência ao tempo de afastamento imposto à Presidente eleita em 2014.6 A mesma autora também protesta contra a violência da polícia: Dizem que debaixo da farda, / tem gente./ E nem precisa escavar profundo./ Dizem que há sangue,/ que há entranhas rubras,/ e uma pele negra/ igual a minha/. Amor e inspiração, inconsciente e existência são temas recorrentes, assim como é insistente a desconstrução de estereótipos ligados à mulher.

 

 

O coral de vozes femininas é representativo da diversidade de estilos apresentadas no quadro geral da poesia realizada, hoje, na Bahia. Nesse quadro, vale destacar a escrita de João Filho. Publicado pela Editora Mondrongo, o seu livro A dimensão necessária conquistou, em 2015, o Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional.  Nascido em Bom Jesus da Lapa em 1975, João Filho é, sem dúvida, uma das vozes mais originais da poesia brasileira atual. Feitos com erudição, domínio dos recursos formais e extraordinária sensibilidade, seus versos tocam o pó da existência, de onde saltam para sondar o mistério transcendente. Por último, é ainda necessário mencionar Alex Simões, poeta e performer com obra multifacetada, cujo arco vai da métrica tradicional ao experimentalismo. Renovadas por essas escritas mais recentes, as linhas de força da poesia baiana foram delineadas por antecessores que, atuantes nos dias de hoje, iniciaram suas trajetórias no século XX. Entre eles, situam-se Antônio Brasileiro, Cid Seixas, Fernando Rocha Peres, Florisvaldo Matos, José Carlos Capinan, Maria da Conceição Paranhos e Ruy Espinheira Filho.

Nascido em 1942, na capital da Bahia, Ruy Espinheira Filho é professor, jornalista, romancista, ensaísta, cronista e, sobretudo, poeta. Reconhecido internacionalmente, frequenta antologias em Portugal, França, Itália e EUA. Comentando o livro Memória da Chuva (1996), o também poeta Cid Seixas refere-se a uma lírica em permanente choque com visões que negam a possibilidade de expressão subjetiva no âmbito da modernidade7. De fato, a afirmação do sujeito ascendendo ao espaço social pela via da linguagem parece ser a mola mestra dessa poética iniciada em 1974, com o livro Heléboro. No entanto, indo além desse fundamento, os poemas cogitam acerca da substância que, no tempo, constrói aquele que se expressa. Mostrando a existência como um percurso de perdas, os versos, livro após livro, vão surgindo de uma voz consubstanciada pelo tesouro das ausências. O sujeito é dimensionado pelas faltas acumuladas e pelas emoções que elas geram nos instantes em que a memória as reativa. Veja-se parte do Poema de novembro: O difícil é aguentar até que a morte chegue/ A morte que mata todas as mortes/ sepulta/ para sempre/ todos os mortos. Como/ este cadáver de amor/ que me perfuma. Mesmo as epifanias eróticas adquirem significado, quando associadas a um ontem, para onde sempre vamos. É o que acontece, por exemplo, no Soneto do anjo de maio: Então, em maio, um Anjo incendiou-me/ Em seu olhar azul havia um dia/ claro como os da infância.

 

DRAMATURGIA E LEITURA CRÍTICA: O QUE É UMA COISA BELA?

Em 2015, a Editora da Universidade Federal da Bahia publicou A herança do absurdo, tese de doutorado defendida por Gil Vicente Tavares. Com largo fôlego, a reflexão volta-se para o Teatro do Absurdo, visto como resposta à crise de valores do período que se seguiu à Segunda Guerra, e também para os rastros que esse teatro deixou na dramaturgia contemporânea. Chama a atenção, no entanto, o fato de a discussão estender-se a textos do próprio autor da tese. Assim sendo, o volume inclui um apêndice com três das suas peças: Ato único, Canto Seco e Os Javalis; as duas últimas mais intensamente marcadas pelos traços do Absurdo, conforme observa o próprio autor8. Ironia, farsa, estranheza, atonia são os conceitos principais que ajudam o leitor a enveredar-se pelo entendimento de um Absurdo que se espraia no tempo e alcança, na contemporaneidade, a criação dramatúrgica de Gil Vicente Tavares. Peça em um único ato, Os Javalis tem em seu centro o pânico e a situação absurda que o gera. Um pacato aposentado (Homem A) vê a sua casa invadida por um vendedor de produtos de limpeza. Esse outro - (Homem B) - traz consigo uma arma e revela-se portador de notícia insólita: ele próprio e o dono da casa são os únicos humanos ainda não destruídos por um ataque de javalis. Tendo assumido o controle do mundo, os animais já haviam exterminado pessoas e instituições. A curva dramática é construída pelo embate entre os dois homens, pois aquele cuja casa é invadida luta com argumentos lógicos, buscando manter-se em contexto familiar e racional. A tensão cresce à proporção que esses argumentos cedem e o aposentado desloca-se, assumindo como sua, a perspectiva do invasor:

HOMEM A Por favor, me compreenda. Estou apavorado pela situação. Nós somos os únicos sobreviventes da espécie e um arsenal de javalis está aí fora, prestes a nos matar. Como posso ficar corajoso frente a uma situação destas? (Começa a chorar).

Permanecendo sem resolução, a tensão aponta, em seu apogeu, para um circuito interminável, no qual violência e pavor tornam-se polos intercambiáveis. Gil Vicente Tavares sugere que as situações e as relações absurdas presentes em Canto Seco e em Os Javalis alimentaram-se das suas sensações de perplexidade e impotência ante as violências físicas e psicológicas impostas pelo capitalismo voraz, surgido com a globalização. Contudo, além dessa ligação mais imediata com o contexto histórico, a peça parece aludir ao poder devastador de elementos que, integrando a interioridade humana, conduzem a humanidade à degenerescência. Depois de uma leitura encenada em Roma, em 2006, Os Javalis teve montagem em Salvador, dois anos depois. Em 2009, encerrou o Festival de Teatro Brasileiro em Fortaleza. A montagem circulou por várias cidades da Bahia, em 2010.

Nascido em Salvador, em 1977, Gil Vicente Tavares é pesquisador e professor da Escola de Teatro da UFBA e diretor artístico do Teatro NU.  Sua peça Sade conquistou, em 2010, o Prêmio Fapex de Teatro e, em 2016, o Prêmio Braskem, como o melhor texto teatral. Sem dúvida, Tavares é uma figura nuclear no conjunto de uma dramaturgia bastante viva e composta por muitos outros nomes. Dentre eles, estão Aninha Franco, Cláudia Barral, Cláudio Simões e Cleise Mendes.

Além de escritora e atriz, Cleise Mendes é, como Gil Vicente, professora e pesquisadora na Escola de Teatro da UFBA. Doutora em Letras, Mendes constrói leituras críticas com hábil domínio de conceitos e, simultaneamente, leveza e acessibilidade. Perceptível em seu ensaio de maior fôlego -  A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia (indicado ao Prêmio Jabuti na categoria Teoria e Crítica literária) - a feliz convivência entre rigor conceitual e agilidade estilística torna-se ainda mais nítida em seus textos curtos. Exemplo disso é o modo como, absorvendo as teses de Benjamin sobre a história; guiada pelo discurso de Adorno sobre as relações entre lírica e sociedade; e igualmente guiada pela teoria dos gêneros literários e também pela ideia da sua superação na dramaturgia contemporânea, a ensaísta constrói uma leitura crítica do poema dramático escrito por Myriam Fraga: Rainha Vashti.

Objeto da crítica literária de Cleise Mendes, o texto de Myriam Fraga  recorre a uma referência contida numa das passagens do Antigo Testamento conhecida como O Livro de Esther9. Nela se conta o trágico destino da Rainha Vashti, esposa do Rei da Pérsia. Derrotado pelos gregos, o furioso soberano decide ostentar seus tesouros durante uma festa, como tentativa de camuflar a própria vulnerabilidade. Considerando que a esposa é a mais bela, dentre todas as suas posses, o marido ordena-lhe que dance, desvelando sua beleza diante dos convidados. Ela recusa e é exemplarmente castigada. Denunciando o limite de qualquer poder, e também a sua insalubridade, Myriam Fraga retoma, nesse poema dramático tecido em torno de um trágico destino de mulher, alguns motivos frequentes na vasta obra que desenvolveu, desde o primeiro livro, Marinhas (1964), até a publicação de Rainha Vashti, em 2015; são eles: o mito, a mulher, a natureza, a morte, a imaginação poética. Seria possível afirmar que o poema grifa um motivo condutor no conjunto de obra. Trata-se do enfrentamento do poder, como geratriz da crise necessária; isto é, do momento propício para rasgar os véus da aparência e dos valores que, estabilizando a imagem do ser, impedem seu contato com dimensões enigmáticas espelhadas pela natureza e pelos mitos. Ao alcançarem margens externas a qualquer hegemonia, mulheres e artistas encontram-se consigo, reconhecendo seu pertencimento a instâncias que os ultrapassam. Assim, quando derrotada e liberta, a rainha silencia, ecoa, em sua mudez, um silêncio cósmico, espécie de vazio universal que essa lírica tardia10 de Myriam Fraga foi capaz de escutar e de expressar. No epílogo, o coro das concubinas encobre a figura da rainha, indicando a absorção da voz individual por uma força não individuada e, desde sempre, afinada à mulher e à poesia. Tem razão Cleise Mendes, quando observa: Com Rainha Vashti, Myriam Fraga direciona a força de sua lírica para uma bem-sucedida incursão no território da dramaturgia, em sintonia com as tendências mais instigantes das escritas contemporâneas para a cena11.

 

CONCLUINDO:

Conforme assinalaram as primeiras linhas deste texto, o seu ponto de apoio foi encontrado na noção de sistema literário proposta por Antônio Candido: um circuito de relações mantidas entre obras, autores e público. Esse circuito não seria viável sem uma rede de editoras. Por isso, ao longo da exposição, houve referência à Editora Caramurê cujas atividades realizadas sob a liderança entusiasmada de Fernando Oberlaender e Márzia Lima extrapolam o âmbito de uma casa editorial. Também de Salvador, é a Editora P55. Com a Coleção Cartas Baianas, André e Marcelo Portugal vêm dando oportunidade a novos autores e promovendo o contato de leitores jovens com escritores consagrados.  Como essa rede não fica limitada à capital, houve referência à Editora Mondrongo, de Itabuna, e à Editora Casarão do Verbo, que nasceu em Anajé. Muitas outras existem, promovendo a literatura baiana. Ao lado dessas iniciativas independentes, situam-se as editoras universitárias e a Academia de Letras da Bahia. Num esforço conjunto com a Assembleia Legislativa da Bahia, a ALB vem publicando a Coleção Mestres da Literatura Baiana. Com portas sempre abertas ao público, a Academia de Letras da Bahia desenvolve ações regulares, com o intuito de enriquecer a vida cultural do estado e incentivar a formação de novos leitores. Voltadas para um público maior, a FLICA (Festa Literária Internacional de Cachoeira) e a FLIPELÔ (Festa literária internacional do Pelourinho) são realizadas anualmente. Ambas integram um conjunto de eventos que vêm aquecendo o mercado editorial e dando vida aos debates sobre a literatura.

 

REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2004. 

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. In: SANTIAGO, S. (org.) Intérpretes do Brasil. V1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

MENDES, Cleise. Rainha Vashti - A dimensão lírica de uma fábula política. In: FRAGA, Myriam. Rainha Vashti. Salvador: A Roda, 2015, p  11-19.

OLIVEIRA, Nelson de. Hélio Pólvora estreia no gênero com trama rural fatalista. Folha de São Paulo, 26/2/2011.

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2602201127.htm

SAID, Edward. Estilo tardio. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SEIXAS, Cid. A lírica como expressão pessoal. Coluna crítica do jornal A TARDE, em 14/4/1997.

http://cidseixas.blogspot.com/2015/11/lirismo-expressao-pessoal.html

TAVARES, Gil Vicente. A herança do absurdo. Salvador: EDUFBA, 2015.

VIEIRA LIMA, Mirella Márcia Longo. Cenas de amor em romances do século XX. Salvador: Quarteto, 2017.

XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

 

OBRAS LITERÁRIAS COMENTADAS:

FONSECA, Aleilton. Nhô Guimarães. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

FRAGA, Myriam. Rainha Vashti. Salvador: A Roda, 2015.

OBERLAENDER, Fernando(Org.) Mulheres, poetas e baianas. Salvador: Caramurê, 2018.

PÓLVORA, Hélio. Inúteis luas obscenas. São Paulo: Casarão do Verbo, 2010.

PORTUGAL, Claudius. MargensÀMargens. Salvador: P55, 2018.

RODRIGUES, Marcus Vinicius. O mar que nos abraça. Salvador: Caramurê, 2019.

TAVARES, Gil Vicente. Os Javalis. In: A herança do absurdo. Salvador: EDUFBA, 2015.

VIEIRA JÚNIOR, Itamar. Torto Arado. Alfragide, Grupo LeYa, 2019.

 

OBRAS MENCIONADAS:

ALBEE, E. Quem tem medo de Virginia Woolf? São Paulo: Abril, 1977.

ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Memória da Chuva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Heléboro. Feira de Santana: Edições Cordel, 1974.

FILHO, João. A dimensão necessária. Itabuna, Mondrongo, 2014.

FRAGA, Myriam. Marinhas. Salvador: Edições Macunaíma, 1964.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.

MENDES, Cleise. A gargalhada de Ulisses: a catarse na comédia. São Paulo: Perspectiva, 2008.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas (70 Anos). Rio de Janeiro: Record, 2008.

RIBEIRO, Carlos. Já vai longe o tempo das baleias. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia/ Coleção dos Novos, 1982.

RODRIGUES, Marcus Vinicius Rodrigues. A eternidade da maçã. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2016.

 

Notas:

  1. Lembrando palavras cantadas por Caetano Veloso, os subtítulos prestam uma homenagem ao artista.
  2. Observando que “os homens não se afeiçoam às calamidades naturais que os rodeiam,” Euclides da Cunha sinaliza que o sertanejo constitui uma exceção à regra: “A seca é um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos.....Acaba-se o flagelo, ei-lo de volta. Vence-o a saudade do sertão. Remigra.” Cf: CUNHA, Euclides, 2002,p.287.
  3. A comparação é realizada com mais minúcias em livro publicado pela Editora Quarteto. Cf: VIEIRA LIMA, Mirella Márcia Longo, 2017, p129-156.
  4. XAVIER, Ismail, 2012,p.41.
  5. OLIVEIRA, Nelson de, 2011, 26/2.
  6. Com 55 votos a favor, 22 contrários e 2 ausências, o Senado Federal autorizou abertura do processo de impeachment de Dilma Roussef, determinando o seu afastamento do cargo pelo período de até 180 dias.
  7. SEIXAS, Cid, 1997, 14/4.
  8. TAVARES, Gil Vicente, 2016/05. ( Espaço do autor no site da EDUFBA) http://www.edufba.ufba.br/2016/05/espaco-do-autor-de-maio/
  9. MENDES, Cleise. In: FRAGA, Myriam, 2015,p.23.
  10. O termo “tardio” é usado no sentido forte que lhe deu Said, sob a inspiração de Adorno. Tardio é o estilo que assume marcas impostas por uma consciência portadora da iminência do seu fim. Rainha Vashti foi o último livro de Myriam Fraga, falecida em 2016.
  11. MENDES, C,2015,p.19.

CAPA:

ilustração da capa do livro Torto arado, Itamar Vieira Junior - Editora Todavia

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