Tema: Fotografia
Por Rogério Ferrari Fotojornalista, com formação em antropologia pela UFBA. Rogério Ferrari nasceu em Ipiaú na Bahia em 1965.

FOTOGRAFIA NA BAHIA

Todos somos ya homus fotográficus y existe una masificación tal que podemos decir que el mundo ha sido cartografiado con las cámaras fotográficas. Frente a esa situación caben dos opciones: una gestión crítica de la abundância y, por outro lado, la búsqueda de las imágenes que faltan – ausentes, invisibles, censuradas, perdidas, etcétera. (Joan Fontcuberta)

Figura 1. Foto: Hirosuke Kitamura. Salvador, 2000.

Há quem diga, e é perceptível, que na festa de Iemanjá, celebrada no dia 2 de fevereiro, na praia do Rio Vermelho, em Salvador, existem mais fotógrafos e fotógrafas que babalaorixás. A paisagem vista de cima, da balaustrada, proporciona uma visão das indumentárias brancas das mães, dos pais e dos filhos(as) de santo, entrecortadas por teleobjetivas de câmeras fotográficas robustas. No festejo acontece um congestionamento de fotógrafos e fotógrafas. O transe na areia inclui uma catarse de clicks.

Deve ser quase impossível um enquadramento, uma perspectiva onde a composição, o espaço da cena, não contenha o homus fotograficus. Será isso uma expressão da relação compulsiva que a prática fotográfica assumiu na contemporaneidade. Haveria, então, na festa de Iemanjá, na era digital, mais lentes que Orixás? 

Essa indagação indica apenas uma falsa questão, embora pertinente, pois quem sabe não haveria que conceder turno para acesso ao local diante da avidez e profusão de pessoas fotografando e interferindo na celebração ritual. Como for, longe de propor falsas polêmicas em torno do direito individual de acesso ao espaço de festejos públicos, de uma situação onde cada um(a) individualmente, ou em hordas1 se sente no direito de invadir a cena, apontar e registrar.

A festa de iemanjá é aqui um exemplo que demonstra a dimensão que ocupa a produção de imagens na contemporaneidade. Tudo é fotografado em detrimento do ver e perceber. Haveria uma impertinência ao não reconhecermos que a ação fotográfica é um ato de intromissão, e que em determinados casos “possui” ou se auto-atribui poder. Contém uma atitude que também nos remete à noção de Voyeurs evocada por Susan Sontag2, quando se refere a determinadas  maneiras na forma de fotografar e de se relacionar com os Outros.

Olhar e ver passa a ser um ato secundário, pois primeiro clicamos, logo, depois e talvez, prestamos atenção, e, caso remoto, parece, conseguimos encontrar aquela atitude pré-histórica de se dar o trabalho de contemplar, de observar, e entender. Isso vale para a festa de Iemanjá como para as circunstâncias mais cotidianas, permeadas hoje pela onipresença de uma câmera nas mãos e por escassas ideias na cabeça. A festa de Iemanjá, em todo caso, é um exemplo que revela a imagem distorcida da fotografia e da prática fotográfica na contemporaneidade. Sob a era do pensar-agir digital o comportamento humano parece refém do registro e do desprezo para com a percepção e a memória, paradoxal que pareça a oposição entre registro e memória.

Contudo, a depender do espírito, do tipo de atenção que cada pessoa exerça e preserve, e de qual posição tenhamos diante da vida, mesmo em uma sociedade padronizada, é ainda possível e necessário ver e olhar com um olhar próprio. E, a despeito das simples e boas intenções, é necessário não reproduzir posturas que objetifiquem os Outros. Como fotógrafos e fotógrafas, é possível ainda resgatar e apresentar a força metafórica das mil palavras contidas numa foto. Não devemos ceder ao sequestro, à inversão das relações, de modo que em lugar de possuirmos o instrumento ele nos possua, apropriando-se do nosso dedo, olhar e imaginação. A título de exemplo, a festa de Iemanjá, ilustra, portanto, a democratização e a banalização do fazer fotografia na contemporaneidade.

Generalizações sempre exigem ressalvas. Então, nas areias dessa praia, e de onde quer que se celebre as festas e situações em que a cidade da Bahia proporciona à prática fotográfica, provavelmente será possível encontrar a singeleza, a discrição, a atitude ciosa de fotógrafos como Adenor Godin – entre outras e outros –, quase invisível, sem se fazer notar, como bem é recomendável ao ato de fotografar sem “ser visto’”, sem interferi, quase como um espectro. Sem pôr a lente, digamos, no nariz dos Orixás.

“A Bahia oferece sempre a estética, a imagem da religiosidade, do corpo negro, mas quando os fotógrafos não se alimentam de uma perenidade, não aprofunda. O problema não é o equipamento (...) você entra numa linha de produção fotográfica que deve entender onde os fenômenos se dão no tempo. O que há é uma pobreza de pensamento e uma riqueza de equipamento. As discussões são vazias.” (Marcelo Reis- fotógrafo, professore de fotografia, produtor e curador do festival ‘A Gosto da Fotografia’)

Figura 2. Foto: Voltaire Fraga. Salvador, 1945*.

Paradoxalmente, numa era em que o acesso à prática fotográfica foi democratizado pela tecnologia das câmeras digitais, a linguagem fotográfica parece atrofiada. Quando a câmera parece fazer mais que tudo, proporcionando uma controversa ausência de limites nos clicks, comparado ao que era a relação com o equipamento analógico – que nos limitava a 36 fotogramas por filme, no caso mais comum do uso de filme de 35 mm –, agora, a relação com o tempo e o espaço resulta bizarra quando naturalizamos a compulsividade e uma atitude extrativista. Havia, querendo ou não, o tempo da espera. Se fotografava respirando, digamos, pensando, observando, tratando de entender a luz e as linhas. O gesto, o quadro, enfim, todos esses ingredientes que integram o conhecimento e o letramento em torno da linguagem fotográfica não eram um atributo dos softwares. Evidente, aqui entra o relativo, pois cada pessoa é uma pessoa. Mas estamos falando dessa estranha contemporaneidade pautada pelos clicks, sensores, teclas, indiferenças e destruição. Cabe não isentar a forma como se faz fotografia hoje da influência que a insanidade do poder das corporações exerce sobre todos nós.

O troço é tão sério, no sentido da produção de uma mudança de atitude, de relação com o tempo e com o Outro, na forma de fazer e pensar, que fotógrafos(as) hoje realizando seus trabalhos em digital se veem às voltas com a infinidade de imagens a depurar no processo de edição. Sem atenção, pela sugestão da falta de limites, pela facilidade que a tecnologia tem proporcionado em nossas vidas de homus fotógraficus e homus espectadores, nós fizemos reféns; nem lembramos do que comemos no almoço, diga-se, da foto feita meia hora atrás. Ela, a tecnologia, o poder do digital nos possuem. Esquecemos que muito é menor, e de que a imaginação é um suporte é imprescindível.

Importa ressaltar o momento para dizer o quanto o fazer da cada época é condicionado pelos adventos, pelas condições materiais, pelas verdades e necessidades forjadas, pela possibilidade de acesso e pelo tipo de atitude que cada pessoa pode discernir frente a realidade. Assumimos que essa realidade é algo de irremediável? Nem olhar, nem ver, clicar! Reiterando, aqui há uma generalização do quadro, mas as exceções não excluem a pertinência em dizer que nós fotógrafos(as), os da era analógica, e mais os nascidos já com os cristais líquidos, estamos, em grande medida, sequestrados. Desse modo, pensar o fazer fotográfico na contemporaneidade, e o que pode vir a ser a fotografia, ou o seu uso por artistas contemporâneos, implica considerar a maneira desatenciosa como estamos lidando com a nossa realidade e condição. Para quê 300 clicks em meia hora, por que fotografar antes ver e olhar? Qual o lugar do invisível, de uma sensibilidade que sugere: ver, percebe, Inspira, e, imperativamente, não fotografa3.

Pensando na fotografia baiana, e alhures, no meio desse contexto de um fazer e existir digital-compulsivo, autômato, tal como adverte a epígrafe, parece que já fotografamos tudo sobre a face do nosso combalido planeta. E pelo excesso já não vemos nada.  Devemos então colocar sobre a mesa uma pergunta: o que estamos fazendo, como estamos fazendo e para que estamos fazendo? Aqui serve-se uma sopa, já que a indagação mescla a necessidade de uma reflexão sobre estilo-estética, sobre a antropologia do fazer, de uma ética, de um por que e para quê, e em quais condições, e condicionados pelo quê.

Falsas dualidades, falsas questões, irrelevantes para muitos, quando se supõe que o contemporâneo é a expressão de um tempo sem juízos, uma sopa onde acontece de não conseguirmos distinguir sabor algum. Onde nos igualamos na passividade e na impotência de uma ruptura com padrões e convenções, a despeito de arrojadas performances e retóricas. Para o caso de determinadas expressões  artísticas, há que ler o cardápio, o texto, para entender o que contém; quando só uma foto desfocada não informa nem emociona, ou mesmo quando uma foto documental-social sobre “a dor do outro” e a beleza e do outro pode apenas diluir essa dor e beleza pelo voyeurismo comum ao modo como fotografamos, nos relacionamos e apresentamos esse Outro – que num fundo bem raso, provavelmente, somos nós mesmos, sem que assim nos reconheçamos. O condicionamento do olhar e do espírito nos turva a visão e as mãos. Certamente os clicks têm saídos enviesados. Quais são as imagens que faltam?

Figura 3. Foto: Pedro Arcanjo.

Com isso, a título de introdução, corroboramos o argumento da epígrafe para dizer que na contemporaneidade, na era digital, da robótica e do automatismo de certos humanos, abundam imagens, clicks, e não há fotógrafo, pessoas, ou produtor de imagens que não se veja atormentado e esvaziado pelo excesso delas. Há, por certo, um constrangimento, uma pergunta, que diante de gestos e relações compulsivas e imediatas, fotógrafas(os) mais ciosas(os) da importância do ver, do olhar, de respirar e de se implicar, devem estar se perguntando...quais são as minhas imagens que faltam? O que é ainda possível dizer através de uma fotografia?

Nunca estive completamente convencido sobre a pertinência do velho ditado que diz que uma “fotografia vale mais do que mil palavras”. Se havia alguma verdade nessa sentença, na atualidade, numa sociedade pautada pelo excesso de imagens, a profusão de fotografias, o fotografar tudo, atua para diluir a força de síntese que uma fotografia pode chegar a ter. Ocorre que de tanto ver, já não olhamos, tampouco discernimos, tamanho o condicionamento da visão e a falta de limites e critérios que, no caso da prática fotográfica, o equipamento e a tecnologia digital têm corroborado.

Como falar de fotografia sem falar do tempo em que vivemos e de como estamos vivendo? A profissão fotógrafo(a), a título de observação, é uma das mais atingidas pela tecnologia digital. Outro paradoxo, já que existe mais gente fotografando e mais acesso ao equipamento do que fotógrafos(as) com emprego e possibilidade de escoar seus trabalhos. “Deixaram de ser necessários”, tal como vem sendo o descarte que o capitalismo tardio produz na vida de milhões de pessoas, e que a toque de caixa, substitui fazeres por um comando. Será verdade que a grande proporção de câmeras e de pessoas fotografando é o inverso do interesse por compreender a realidade, a linguagem fotográfica, e saber da diferença entre fotografias e imagens?

Quais poderes nos detém, quais abismos evitamos saltar? Como se faz fotografia a cada tempo e como estamos nós agora, que atenção depositamos sobre nós mesmos para que seja possível um olhar singular, inquieto, rebelde como convém sermos diante de tanta infâmia? Sob quais condições e possibilidades realizamos a fotografia? E, indo ao ponto do que deveria ser o conteúdo específico desse verbete, “Fotografia contemporânea na Bahia”,  dando sentido a essas reflexões, pergunto: por que ao pensarmos na fotografia na Bahia – no âmbito das pessoas interessadas em pensar sobre isso –, os nomes que imediatamente lembramos, ou sobressaem, são os de Pierre Verger e o de Mário Cravo Neto?

Figura 4. Foto: Andrea Fiamenghi.

Esse preâmbulo é aquela volta que damos para dizer que não existe uma fotografia contemporânea da Bahia. Ou, melhor dito, que a foto realizada na Bahia não exprime qualquer singularidade de maneira que o contemporâneo que nos habita expresse e caracterize uma foto baiana. Como fotógrafo baiano não me interessa, nem me parece indicado falar sobre o trabalho dos outros sem que os outros vejam e escutem. Por outro lado, e sobretudo, não me parece possível falar da fotografia na Bahia quando a parte visível e possível desta corresponde a um universo muito restrito. O viável é pensar, nomear, a existência de alguns(mas) fotógrafos(as) que habitaram-habitam e transitam-transitaram pela capital, e que ao longo de décadas, e recentemente, tiveram a possibilidade de se fazer conhecer, de realizar e apresentar seus trabalhos. O mais, é perder de vista que fazer fotografia, e constituir-se como fotógrafo(a), e não como alguém que produz imagem ou se utiliza da fotografia como suporte, depende de condições, circunstâncias, que extrapolam o âmbito do desejo e da vocação individual.

“Não há uma peculiaridade, identidade, porque estamos tão interligados...somos influenciados por tudo.” (Cristina damasceno. Professora de Belas Artes-UFBA, e pesquisadora)

“Não existe foto baiana. Não há uma singularidade.  Mas isso não se aplica só à fotografia. Não há nada que seja um distintivo nem na temática nem no aspecto técnico. Há uma facilidade de acesso, os equipamentos. Um certo fetiche com a aparelhagem.” (Alejandra Muñoz. Professora de Belas Artes-UFBA, e curadora)

De que o mais reconhecido fotógrafo da Bahia siga sendo um francês, ou talvez um fotógrafo cujo trabalho foi majoritariamente feito em Studio, demonstra a diversidade de limites que perdura. A existência ou não de uma fotografia baiana não está relacionada com ser baiano, assim como o fato de ser o mais valorado – ou valorizado no mercado –tampouco expressa um critério que não deva ser posto em questão. Há uma fotografia feita na Bahia, mas isso não equivale dizer que exista uma fotografia baiana. E a proeminência de dois, e não treze, só revela o caráter elitista comum ao ambiente das artes.

No entanto, salvo as necessárias ressalvas e objeções, creio que se há uma marca na fotografia baiana, e não tão somente de uma fotografia feita na Bahia, é preciso dizer que ela está no trabalho do Pierre Verger. A forma peculiar como fotografou as coisas dessa terra faz dele um precedente, seu trabalho e atitude são especiais.

Este reconhecimento restrito inicialmente ao nome de Verger contém todas as injustiças pertinentes a um país em cuja realidade é historicamente caracterizada por desprezos, injustiças e privações, o que exclui, a priori, para o caso em questão, a possibilidade de apreender a linguagem fotográfica, de desenvolver trabalhos, de ter trabalho, de expô-los, e de dispor de espaços para interlocução, e sobretudo para descentralização. A Bahia não é Salvador. Tanto é assim que Voltaire Fraga4, fotógrafo baiano dedicado a registrar o cotidiano da cidade de Salvador durante a primeira metade do século passado, realizou sua primeira exposição na cidade que fotografou durante décadas apenas em  1999. Quem de nós o conhece?

A Bahia tem uma marca fundamental que é a vinda de PV. A gente pensa a fotografia na Bahia antes e depois de Verger. Havia Voltaire Fraga, que fotografava as coisas na Bahia, tem uma coisa próxima, mas Verger tem uma prática mais elaborada, mais direcionada para abordagem. PV traz a escola francesa, na escala do 6x6. Um fotojornalismo etnológico. Não havia uma preocupação com o conceito.” (Pedro Arcanjo. Fotógrafo, curador e produtor da Bienal do Recôncavo)

Figura 5. Foto: Pierre Verger. Festa de Iemanjá. Salvador, 1947.

Se a Bahia fosse Paris, Havana, Montevideo, ou mesmo Ouagadougou, onde existem políticas públicas voltadas para a formação e para a exibição de obras fotográficas, provavelmente poderíamos nomear Verger ao lado de uma dúzia de outros nomes oriundos de Feira de Santana, Vitória da Conquista, Ibicuí, Xique Xique, Andorinhas, Banzaê, além de Salvador, onde muitos fotógrafos modernos e contemporâneos nutriram-se da referência do trabalho do trabalho Verger, ao tempo que se viram privados de outras referências. Reitero, falar só de Pierre Verger é uma tremenda injustiça, expressa uma profunda lacuna. A lacuna causada por um país que priva as pessoas de Serem, e a lacuna que resulta do meu desconhecimento.

Diante de uma realidade composta por ausência de políticas culturais públicas e contínuas, e de uma realidade socioeconômica injusta, ficamos impossibilitados de conhecer e reconhecer devidamente não só o trabalho de um contemporâneo baiano de Verger, como Voltaire Fraga, mas de fotógrafos e fotógrafas como Adenor Godin, Aristides Alves, Pedro Arcanjo,  Hirosuke Kitamura, Fernando Vivas, Alba Vasconcelos, Antônio Olavo, Arthur Ikissima, Wilson Besnosik, Sora Maia, Milton Mendes, Luiz Antônio Bastos, Alice Ramos, Isabel Gouveia, Agilberto Lima, Mara Mércia, Lázaro Roberto, Márcio Lima, Stella Alves, Rejane Carneiro, Ieda Marques, Manu Dias, Marco Aurélio Martins, Bauer Sá, Claude Santos, Rui Resende, Xando Pereira, Shirley Stolze, Haroldo Abrantes, Célia Aguiar, Marcelo Reis, Maria Sampaio, Valéria Simões, Roberto de Souza, Álvaro Vilella, Gildo Lima, etc. Além de uma nova geração5, como Christian Cravo, Andrea Fiamenghi, Micael Aquilah, Paulo Coqueiro, Ricardo Prado, Marina Alfaya, Rodrigo Wanderley, Rafael Martins, Paulo Lima, Vinicius Xavier, Fábio Duarte, Edgar Oliva, Eriel Araújo, Ricardo Sena. Segue a lista...

O primeiro grupo representa uma geração que atuou no fotojornalismo, na área de publicidade, se virando, e, eventualmente produzindo ensaios próprios, entre o final dos anos setenta até a atualidade. Deveriam ser conhecidos, viabilizados, expostos, debatidos, para sabermos de que forma, ao lado de uma nova geração de fotógrafos(as), esses nomes representam e caracterizam a fotografia realizada na Bahia.

Estamos falando de três ou quatros gerações de fotógrafos (as) que compreendem um período entre o final dos anos setenta até os dias atuais. Os primeiros viveram o tempo da fotografia analógica quando para atingir a técnica fotográfica era preciso algum estudo e muita prática. Grosso modo, a formação se dava durante a prática, de forma autodidata, e a possibilidade de aprofundamento sobre aspectos estéticos conceituais da linguagem fotográfica estava subordinada à certas contingências – aos imperativos pessoais de cada fotografo(a), bem como pela ausência de políticas e espaços públicos para fomentar a formação cultural e intelectual.

Encontrar a luz dependia do fotógrafo(a) e não da câmera. Entender a linguagem, discernindo sobre aspectos técnicos-estético: composição, perspectiva, enquadramento, contraste, edição de imagens, revelação, exigia dedicação e uma formação mais apurada. Hoje as câmeras digitais e a ferramenta Photoshop exercem a função dos laboratórios, e em alguns casos, subtrai a necessária atenção que se deve dedicar ao olhar e ao saber. Oferecem opções infinitas que potencializam, mas que também funcionam como artifícios. Resultado disso, uma profusão de fotos bonitas, justificadas através de conceitos, em contrapartida à carência de fotos boas e com alguma consistência e singularidade estético-narrativa.

Ao que parece, essa geração de fotógrafos baianos atuantes entre os anos setenta, oitenta e noventa, não passou incólume às influências de fotógrafos como Cartier Bresson, Josef Koudelka, Dorothea Lange, Robert Doisneau, Robert Capa, Alexander Rodtchenko, Sergio Larrain, Robert Frank, Cristina Garcia Rodero, e, claro, Pierre Verger. Expressões de uma fotografia moderna caracterizada pela temática sócio-política. Posteriormente à Segunda Guerra, o Fotojornalismo, a foto documental, a fotografia social, como alguns costumam enquadrar, estabeleceu o que veio a ser definido como fotografia moderna.

Figura 6. Foto: Antônio Olavo. Canudos.1990.

O contemporâneo seria uma demarcação de fronteiras, um assunto para outro texto. Tangencialmente, no entanto, esses parâmetros aparentemente opostos, servem para dizer que foi a referência desses fotógrafos(as) modernos a inspiração para o fazer entre os fotógrafos baianos atuantes nas últimas três décadas do século passado.

“Eu acho que a fotografia, a singularidade tá em gestação. Quando vai para o contemporâneo é difícil dizer que é de um lugar, porque o contemporâneo é o comum. O cenário não constitui uma fotografia baiana. O contemporâneo não tem a pretensão de criar uma escola, o cara fotografa mas tem compromisso com outra coisa. É um momento da transitoriedade da expressão artística. O contemporâneo ele borra as fronteira, e não é só uma questão da Bahia.” (Pedro Arcanjo)

Mais do que a expressão de uma tendência estética e de um conceito, a maneira de fotografar dos considerados modernos se dava no bojo do exercício da profissão. Grande parte da obra de Bresson, Capa, Larrain, Lange, por exemplo, resultam de trabalhos fotojornalísticos e de documentações fotográficas pontuais, produzidas no contexto da realização de reportagens onde esses profissionais exprimiam singularmente sua percepção do assunto, com apuro, senso estético, compreensão e interesse pela realidade na qual imergiam para fotografar.

Como relata Aristides Alves6, “era possível fotografar fora da pauta, com temáticas variadas, imprimindo um estilo próprio, encontrando brechas no cotidiano para um trabalho mais pessoal”. Muitos fotógrafos(as) brasileiros(as) e internacionais, desenvolveram, portanto, uma obra autoral concomitante aos trabalhos que lhes eram atribuídos pelos veículos para os quais trabalhavam de forma fixa, ou como autônomos. No nosso caso, ao contrário dos fotógrafos do hemisfério norte, são poucos os fotógrafos(as) daqui que puderam dar visibilidade à obra realizada ao longo de décadas. Existe uma iconografia do cotidiano da cidade do Salvador, por exemplo, que pecamos por não conhecer. O trabalho de Fernando Vivas, é oculto por imposição, e o de Ieda Marques, sobre as cozinhas na Chapada Diamantina, é tão expressivo que nos proporciona imersão e silêncio. Isso apenas para citar dois olhares primorosos.

A ausência de tantos outros nomes, pregressos como contemporâneos, revela o quanto é indevido falar de uma atividade nomeando alguns e negligenciando a existência de outros(as). Pouco ou quase nada poderia dizer sobre a obra de cada um, salvo pouquíssimas exceções, justamente porque esses e essas fotógrafos(as) no cenário da fotografia da Bahia, no período mencionado, e ainda hoje, vivem a adversidades que os impede de reunir, sistematizar e mostrar seus trabalhos, produzindo exposições, editando livros, etc. Alguém dirá, mas hoje estão as plataformas digitais, sites, blogs, sendo possível prescindir do espaço físico, dos encontros, do impresso. Será? O fortuito, tal como parece ser o ambiente virtual, é o espaço do inopinado.

“O que influencia são as poucas possibilidades de mostrar o trabalho, ausência de salão de fotografias. Não tem Salão de Arte, não tem Bienal. Falta o espaço local. E a própria linguagem do contemporâneo está em processo. Como processo ela se identifica em certos pontos, não estabelecidos com o moderno. A fotografia como suporte; o contemporâneo se apropria do moderno.”  (Pedro Arcanjo)

Deve haver, para quem, todavia segue essa descrição mutilada, uma certa inquietação quanto ao fato de que até o momento não relacionei o nome daquele que para muitos é tão representativo da fotografia baiana, ou feita na Bahia, como Pierre Verger. Qual o lugar ocupado por Mário Cravo Neto, que por deliberação paradoxal não incluí entre os comuns?

Figura 7. Foto: Valéria Simões.

Saliento a importância de discussão sobre o mérito, sobre a realidade que torna possível reconhecer um e não outros(as), sobre as circunstâncias que torna possível que um fotógrafo(a) se torne reconhecido(a), ou não, e de que um fotógrafo encontre espaço e ressonância, ou não. Não cabe uma consideração estrita sobre estilo, tema, capacidade técnica e qualidade estética. Importa indagar sobre critérios mais amplos, para entender por que este-esta, e não aquele ou aquela assumem significância e outros nem tanto? Sabemos o quão relativo pode ser uma valoração atribuída em função de critérios curatoriais e circunstanciais. Então, ao não inseri-lo entre os comuns, involuntariamente reservei-lhe um lugar especial.

Por qual motivo for, necessário reconhecer, no universo ao nosso redor, o caráter distinto do trabalho deste em relação aos demais. Uma distinção que primordialmente remete ao fato de que a fotografia de Cravo Neto é uma fotografia feita em Studio, diametralmente oposta ao referente da fotografia moderna. Heresia à parte, uma fotografia realizada com apelo à temática baiana, negra, deliberadamente estetizada, meticulosamente montada em suas linhas e movimentos, com uma geometria e iluminação calculadas; longe da influência do fotojornalismo, da fotografia de rua, e de uma condição itinerante e precária. Um mestre, um grande artista na abordagem peculiar de retratar elementos e pessoas dessa terra. Nem melhor nem pior, um grande e importante fotógrafo, singular, pois fotografou as coisas daqui de uma forma até então inusitada.

Robert Mapplethorpe7, fotógrafo estadunidense,  parece ter sido sua única fonte de inspiração, cuja equivalência na forma de fotografar objetos e pessoas, compondo elementos e exatizando a iluminação, nos leva a pensar que eram almas gêmeas.  E fazer isso na Bahia, digamos, assim como fez Verger, agrega força cênica, impressiona esteticamente.

O lugar de destaque que possui o trabalho de Mário Cravo Neto certamente não é arbitrário, não obstante, a ressalva à sobreposição de seu nome sobre o universo de outros nomes, não pode ser entendida apenas no fato de sua obra possuir uma qualidade estética-conceitual. Com isso quero salientar que ao discutir fotografia na, e da Bahia, em Salvador, especificamente, não se deve perder de vista as ocasiões que fazem os monges. A ocasião fez o monge, Monge Verger, ao qual somos todos muito gratos por seu trabalho e existência, mas a ocasião também obliterou Voltaire Fraga; João, José e Maria.

Aqui, modo geral, os fotógrafos exerciam o ofício como uma atividade laboral, poucos podiam, podem atuar como diletantes, pelo mero prazer e vocação por esse fazer, o que, a priori, inibe a possibilidade da produção de obras especificamente autorais. Há, e houve, a despeito da qualidade dos trabalhos e de algumas narrativas, uma questão de classe, de poder, no filtro que define, senão valor estético, a viabilidade para poder apresentar e desenvolver os trabalhos. A ressalva sobre o lugar canônico atribuído a Mário Cravo Neto é apenas para dizer que proeminências nunca são gratuitas, sobretudo numa sociedade desigual, onde a possibilidade de ser e se manter como artista, fotógrafo, grosso modo, é abortado pelo imperativo da sobrevivência – ou possibilitado por certas contingências.

Reitero, não é possível falar de nada em sua totalidade sem perder de vista, por exemplo, que a fotografia durante todo o século vinte, até o advento das câmeras digitais, era um ofício oneroso, seu advento e prática inicial era exercido por uma pequena burguesia urbana. A maioria dos fotógrafos(as) comuns eram trabalhadores(as), viviam imersos na cotidianidade dos trabalhos das redações e de produções outras. Expor, elucubrar, produzir coisas fora das urgências da vida, sempre foi e segue sendo nesse país-vergonha, um privilégio. Em grande medida, esse é um aspecto que também determina a possibilidade de existência de uma fotografia baiana, singular.

O que existe são fotos feitas na Bahia, por fotógrafos da Bahia. E se no passado, o principal fotógrafo baiano diziam ser um francês – dado o nosso embaçamento existencial, dado o caráter desigual e injusto que rege a vida nesse país, estamos privados de saber como poderia ser se a fotografia fosse franqueada a centenas de prováveis fotógrafos(as), meninos e meninas do sertão, dos bairros de Coutos, Valéria, Periperi, da periferia, que é o centro. Por ora, o que temos é o que não temos. A fotografia na Bahia ainda é obra de um metier urbano, localizado, cuja subjetividade, imaginação e delírio político-criativo estão restritos, se não atrofiados. E se a tônica é o paradoxo, se antes tínhamos o olhar de um francês como expressão singular, talvez hoje a singularidade da fotografia baiana esteja no olhar de um japonês8.

Figura 8. Foto: Rogério Ferrari

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Ps. A Bahia durante décadas esteve sob o poder de um rei. E, como se sabe, todo reinado tem uma corte, e uma corte, os artistas da corte. Quem, qual artista, fotógrafo(a) dispôs de subsídio público durante esse tempo de reinado Carlista? Como for, agora, na Bahia, estamos há décadas sob outra tônica. Podemos acessar editais, graças aos quais muitos artistas puderam viabilizar seus trabalhos e desenvolver uma formação. Não obstante, a fotografia na Bahia, como qualquer outra expressão artística cultural, não pode ficar à mercê de editais ocasionais. Necessário se faz políticas culturais de Estado, contínuas. Que atividades afins à fotografia sejam adotadas como parte de uma política pública de educação e fomento à cultura, por exemplo. Que voltem os Salões, as Bienais, os Festivais de Fotografia. Os editais, os Pontos de Cultura, os Festivais de Cine e Fotografia, que puderam ser viabilizados ao longo dessas últimas duas décadas, insinuaram tudo que há de latente, mas que aparecendo só através de Editais, existem como espasmos. As oficinas de fotografia que pude realizar em cidades do interior da Bahia, via edital ou não, sinalizou que a existência de uma fotografia baiana, e não só feita na Bahia, poderia gestar-se aí, em meninos e meninas, ainda sem tanta retórica e conceitos – que ajudavam à família tirando o leite de cabra. Fizeram as oficinas9, mas quando findou o edital, os prazos, os cachês, a possibilidade desapareceu. Restou apenas o leite de cabra.

 

Referências:

* Fotos de Voltaire Fraga extraída da internet do site: https://utopica.photography/collection/nggallery/collection-home/Voltaire-Fraga/

*As citações ao longo do texto são fragmentos das entrevistas realizada pelo autor, em agosto/setembro de 2020, com Cristina Damasceno, Alejandra Muñoz, Marcelo Reis e Pedro Arcanjo.

* Os trabalhos dos fotógrafos e fotógrafas citados podem ser encontrados através da internet. Alguns dispondo de páginas, sites, blogs, outros em apresentações dispersas.

 

Notas

  1. Tornou-se comum a existência de safaris fotográficos. Pessoas participantes de clubes de fotografia e de cursos de fotografia, que vão em grupo, fotografar determinados temas. Ao que parece, a festa de Iemanjá é au concours.
  2. Susan Sontag (1933-2004), escritora, filósofa, ativista estadounidense, autora dos livros “ Sobre Fotografia” e “Diante da Dor dos Outros”. Nessas obras, ela reflete, entre outras questões, sobre o modo de fazer e atuar de fotógrafos-as dedicados à temática social, e de uma fotografia de guerra. A ideia de voyeur atribuída ao fazer fotográfico, indicaria um postura contemplativa, passiva, do fotógrafo-a diante da realidade registrada
  3. Ver o filme Before the Rain (Antes da Chuva), do diretor Milcho Manchevski
  4. Sobre esse fotógrafo ver por exemplo: https://bahiaja.com.br/cultura/noticia/2019/08/22/a-bahia-poetica-de-voltaire-fraga-na-roberto-alban-galeria,121239,0.html
  5. http://www.150fotospelabahia.com.br/. Esse é um site de uma campanha realizada em 2020, onde fotógrafos e fotógrafas baianos(as) doaram fotos para serem vendidas e assim arrecadar fundos para algumas comunidades no contexto da pandemia. Nele é possível ter uma ideia superficial da diversidade e do tipo de fotografia produzida na Bahia.
  6. Relato extraído do trabalho da pesquisadora Agnes Mariano sobre “ Fotógrafos na Bahia”. in: http://docplayer.com.br/29387571-Fotografos-baianos-agnes-mariano.html
  7. http://www.mapplethorpe.org/portfolios/
  8. Refiro-me ao trabalho de Hirosuke Kitamura, fotógrafo japonês residente em Salvador há mais de vinte anos. {http://hirosukekitamura.com/}
  9. https://www.youtube.com/watch?v=PSRp0Gd-bd
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