Tema: Raças e etnias
Por Wlamyra Albuquerque Professora História Brasil – UFBa, Doutora em História Social- UNICAMP e Pesquisadora do CNPq

UMA PERGUNTA PARA QUEM NUNCA FOI À BAHIA: O QUE É RAÇA?

 

Raça é um tema delicado na sociedade brasileira. É tão delicado que exige começarmos a falar sobre o assunto a partir de uma negação: raças, se pensadas como grupos biológicos distintos, não existem. A ciência contemporânea já demonstrou que a aparência física e o local de nascimento dos grupos humanos não os fazem pertencer a raças distintas, diferentemente do que pensavam os cientistas do século XIX. Negar raça como algo natural, dado pela constituição biológica, é aqui o primeiro passo para falarmos de raça como grupos sociais que reconhecem ou são reconhecidos a partir de certas características exibidas nos corpos, gestos, modos de ver o mundo e nas suas práticas culturais. Isto quer dizer que raça é categoria social, histórica, política e cultural; uma invenção humana usada para diferenciar a partir de sinais e/ou formas de pertencimento. Invenção nada inocente se lembramos que raça continua a ser justificativa para a classificação, subjugação e extermínio de africanos, indígenas, nordestinos, ciganos, judeus e, mais recentemente, imigrantes latino americanos. Mas raça também tem sido uma palavra útil para que estes mesmos grupos se organizem, celebrem modos de estar nas sociedades, lutem e planejem coletivamente o futuro por partilharem o passado, ascendência e/ou características físicas.

Portanto, usamos a palavra raça para agrupar ou distinguir as pessoas considerando, principalmente, a cor da pele e outras características como o tipo do cabelo, por exemplo. É deste modo que o censo mapeia as populações negras, brancas e indígenas no Brasil. Mas o que faz raça ser palavra ainda frequente no vocabulário contemporâneo é o adjetivo que quase sempre a acompanha: negra. Não por acaso, “raça negra” é um dos termos mais frequentes nas buscas do google para quem quer saber sobre a Bahia.

Quando se diz que o Brasil é o país com a maior população negra fora do continente africano, o texto costuma vir estampado com uma foto da Bahia, com mulheres e homens negros sorridentes. Isto não é uma coincidência ou mera repetição imagética. Segundo o IBGE, em 2016, 51% da população brasileira se declarou preta ou parda, já na Bahia 80% dos entrevistados se declararam negros (pretos e pardos). A predominância negra no estado conta sobre a história de um país que se formou a partir da colonização portuguesa, sustentada pela escravização de africanos, inicialmente concentrada nos canaviais do Recôncavo baiano. Estima-se que durante os mais de 300 anos de tráfico cerca de quatro milhões de pessoas foram trazidas forçosamente para o Brasil, boa parte delas desembarcaram nas praias da Bahia. Desde então, este lugar se manteve demograficamente e culturalmente negro. A Bahia foi o primeiro e, por muito tempo, o mais importante porto de chegada dos portugueses na América. Desde que as caravelas atravessaram o Atlântico para colonizar a América portuguesa que as águas calmas da baía de todos os santos passaram a consumir ferozmente a força de trabalho dos africanos. Já no século XVI, com a dizimação de vários grupos indígenas e a escravização ou expulsão de outros, os portugueses se assenhoraram de terras e pessoas.

No tempo das caravelas, foi explorando e ocupando o Recôncavo baiano, - como se convencionou denominar a vasta faixa litorânea que circunda a baía -, que os colonizadores integraram o Brasil ao comércio atlântico. Por isso, o Recôncavo baiano é “antes de tudo, uma terra oceânica” (Mattoso, 1992:54). Nesta região, onde fica a cidade de Salvador, foram instalados os primeiros engenhos de cana de açúcar, núcleo da formação brasileira monárquica e escravista. Pela boca da baía entravam milhares de escravizados e saiam muitas sacas de açúcar. Essa empreitada colonizadora se fez lucrativa graças às terras férteis do massapê e ao trabalho de milhões de africanos e seus descendentes.

 

 

AS ÁFRICAS DA BAHIA, PARA QUEM AS VIU DE LONGE

 

“Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro” é a frase do viajante alemão Ave-Lallemant ao chegar em Salvador, em 1858, que ainda define a dimensão da presença dos africanos e seus descendentes na Bahia. Mas, é preciso ponderar sobre os que os olhos europeus deste viajante viram na capital baiana. Além do grande contingente populacional a imagem da Bahia e, especialmente da região do Recôncavo, como a maior África fora da África também é o resultado de uma longa construção histórica e cultural. Para a Bahia vieram povos de áreas e sociedades distintas do continente africano que na penosa travessia atlântica viveram uma das maiores diásporas da história da humanidade. Essa multidão de corpos negros estava longe de ser homogênea. Eram jejes, angolas, benguelas, congos, cabindas, monjolos, dentre outros que passariam a compor a massa de trabalhadores ocupada nas lavouras e em todas as ocupações urbanas do país.

Ainda no século XIX muitos viajantes europeus vieram ao Brasil em busca de impressões da vida nos trópicos e começaram a estabelecer uma certa classificação dos povos africanos aqui escravizados. Os relatos destes visitantes enfatizavam, como fez Ave-Lallemant, a forte presença negra em cidades como Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Eram artistas e cientistas que interpretavam, a partir de suas lentes colonizadoras, a diversidade de corpos e modos de viver flagrantes no cotidiano das ruas. Johann Moritz Rugendas (1802-1858), desenhista e pintor alemão, quando esteve na Bahia e em Recife na década de 1820, prestou atenção a vários aspectos dessa presença africana, como por exemplo, às marcas étnicas, as chamadas escarificações, que os africanos exibiam na pele, inclusive no rosto.

 

Figura 1 – “Benguela, Angola, Congo, Monjolo”, Rugendas.


RUGENDAS, Johann Moritz. BENGUELA, ANGOLA, CONGO, MONJOLO. Domínio Público. 

Ao mapear particularidades das nações africanas, Rugendas associou origem étnica a traços psicológicos, colaborando para a construção de estereótipos sobre os grupos por ele observados. Em um dos seus textos mais conhecidos, ele registra a seguinte ideia:

 


[...] os minas e os Angolas são considerados excelentes escravos: são dóceis, fáceis de instruir e suscetíveis de dedicação, quando mais ou menos bem tratados [...]; os Rebolos são mais turrões e mais predispostos ao desespero e ao desânimo[...]; os Gabanis são mais selvagens e mais difíceis de instruir que os precedentes [...]; os Mongolos são os menos estimados; são em geral pequenos, fracos, muito fracos, preguiçosos e desanimados [..]. (Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro, 1994, p. 17).
 

Lendo a descrição acima podemos notar que Rugendas tenta relacionar a origem dos povos a certos comportamentos, como torrões e selvagens para os Rebolo; ou capacidade física, fracos e preguiçosos para os Mongolos. Esta classificação, evidentemente, nos conta muito mais sobre o olhar do estrangeiro do que sobre as características destes grupos étnicos. Se quisermos analisar certas atitudes individuais e coletivas daqueles escravizados, o caminho seria investigar as suas condições de vida, de trabalho e os seus planos políticos. E, não podemos deixar de pensar que a persistência de adjetivos como preguiça, moleza e alegria esfuziante continuam a ser associados sem qualquer reflexão aos baianos. Neste sentido, essencializar, relacionar comportamentos a características que seriam inatas aos grupos é uma forma de racismo.

As roupas, gestos e formas de trabalho também foram descritas em diários, desenhos, pinturas e fotografias por estrangeiros que visitaram o Brasil escravista. Ainda no século XIX, as descrições dos viajantes sobre a Bahia e a sua gente oscilavam entre o mais completo deslumbramento quanto pela repulsa. A inglesa Maria Graham escreveu no diário de viagem o que viu do navio que a levava para Salvador, com as seguintes palavras:

 


“Esta manhã, ao raiar da aurora, meus olhos abriram-se diante de um dos mais belos espetáculos que jamais contemplei: uma cidade, magnífica de aspecto [...]. (Maria Graham, 1958:144).”
 

Já o francês François Biard não notou “nada de pitoresco: por toda parte negros a gritar e a empurrar. Nenhuma nota singela nos costumes: saias e camisas sujas, pés enlameados, quase inchados a denunciar essa terrível doença elefantíase” (Auguste-François Biard, 1945: p 25). Os gritos e empurrões nas ruas de Salvador fazia parte do dia a dia de uma cidade portuária, com um intenso comércio e onde, “tudo que trabalhava” era negro. Johann Moritz Rugendas preferiu registrar essa algazarra como algo pitoresco, próprio a uma sociedade escravista e tropical. É o caso da imagem que ele compôs sobre capoeira:

 

Figura 2 - " San-Salvador", 1835, Rugendas


Johann Moritz Rugendas, San-Salvador, aquarela e litografia sobre papel, acervo Biblioteca Nacional.

 

Representações, como a da gravura acima, fizeram parte do conjunto de obras que Rugendas publicou em Viagem pitoresca através do Brasil, livro que circulou com versões em francês e alemão. Longe de ser uma reprodução de capoeiristas na Bahia, o artista apresentou ao seu público o exotismo esperado dos trópicos, o mundo pitoresco, ao ambientar a capoeira numa clareira na mata. A imagem, portanto, é uma síntese do que ele interpretava como peculiar à Bahia – paisagem exuberante e cultura africana- a ser veiculada junto aos europeus curiosos acerca da vida para além do oceano Atlântico e abaixo da linha do Equador. Numa certa medida, as imagens que hoje são construídas da Bahia contemporânea também se apoiam nessa ideia do exotismo negro nos trópicos.

É comum que as campanhas publicitárias, especialmente as voltadas ao turismo, apresentem imagens da Bahia como um pedaço da África que se prolonga do outro lado do oceano atlântico; a terra da “raça negra” que teria guardado tradições intocadas, herdadas daqueles que foram escravizados no Brasil. Esta estratégia de marketing, mais do que vender um destino turístico, veicula a ideia de singularidade racial reservada à Bahia, ao tempo em que encobre a presença negra em outros estados do país. Deste modo, quem compra um pacote turístico para a Bahia, além das belas praias e do casario colonial teria acesso a algo que lhe seria estranho, desconhecido porque vindo de um outro lugar: uma África homogênea; e de um outro tempo: o passado escravista do Brasil. Também não será incomum que esta ideia de África preservada desde o tempo dos colonizadores, apresente mulheres negras e mestiças como principal cartão postal. Por isso, a Bahia contemporânea tem uma longa história que precisa ser repensada na perspectiva de negarmos a objetivação dos corpos femininos negros.

No século XIX, as mulheres negras e indígenas foram fartamente desenhadas por lentes européias criadoras do exotismo. Em algumas gravuras de Rugendas, como “costumes da Bahia”, mulheres aparecem carregando crianças, sendo observadas ou auxiliando aos homens. Deste modo, o olhar dirigido a elas reforça os papéis sociais que lhes eram destinados na época.

 

Figura 3 - “Costumes da Bahia”, 1835, Rugendas.


Detalhe da imagem de Johann Moritz Rugendas, sem título. Título alternativo: Costumes de Bahia. Acervo de Iconografia / Instituto Moreira Salles.  

Embora as gravuras de Rugendas tenham sido produzidas no começo do século XIX e digam respeito às expectativas que o público europeu tinha acerca da vida num país escravista nos trópicos, há continuidades entre os sentidos impressos nessas imagens e naqueles que são construídas sobre a Bahia no século XX e nos dias de hoje. A persistência na ideia da “raça negra” como exotismo e das “etnias” indígenas como reminiscências do tempo dos primórdios têm sido reeditada ao longo do tempo.

 

 

SOB AS LENTES DOS FOTÓGRAFOS, A BAHIA NEGRA SEDUTORA

 

A fotografia chegou ao Brasil na década de 1850, e ao longo da segunda metade do século XIX e no começo do XIX, esta técnica de impressão no papel se sofisticou e se tornou fundamental, não só por permitir o registro de eventos e personalidades, mas também para a construção de imagens sociais. As primeiras notícias sobre estúdios fotográficos na capital da Bahia são da década de 1870. Era um tempo de muitas novidades. As linhas de bonde passavam a agilizar o trânsito na cidade ligada por ladeiras íngremes. Em 1873, foi inaugurado o famoso elevador Lacerda, hidráulico, que ainda hoje une a cidade alta, centro administrativo, a cidade baixa, zona portuária e comercial da época. Àquela altura a escravidão passava a ser duramente combatida pelo movimento abolicionista, enquanto a população liberta e negra nascida livre ia se fazendo mais numerosa do que a escravizada. Em meio a mudanças urbanas e políticas, fotógrafos estrangeiros instalaram estúdios em Salvador e passaram a produzir retratos individuais e carte-de-visite, os cartões postais que se tornaram tão cobiçados em todo mundo.

Para incrementar a moda dos cartões postais, registros de negros e indígenas foram produzidas em estúdios fotográficos com a finalidade de serem amplamente comercializadas. Havia um mercado ávido por estas imagens que servissem como “lembranças” mesmo de onde nunca se esteve, recortes de paisagens distantes, formas de imaginar lugares desconhecidos e exóticos. Segundo o historiador Boris Kossoy, os cartões postais eram uma espécie de mundo portátil acessível aos olhos. Era algo inédito num tempo em que a ficção científica de Júlio Verne, por exemplo, explorando lugares vistos como inóspitos, a exemplo da selva africana, era avidamente consumida na Europa.

Com a produção de séries fotográficas, com legendas genéricas que raramente identificavam os retratados, os fotógrafos dos finais do século XIX e começo do XX impulsionaram a circulação de estereótipos sobre populações negras e indígenas do Brasil. É possível que ao escolher cenário, pessoas, poses, texturas e cores não só o fotógrafo, mas também os retratados constituíssem a estética sobre si mesmos e sobre o seu grupo social, o seu tempo e lugar. Algumas fotografias que passaram a fazer parte de acervos particulares nos indicam neste sentido, uma vez que a iniciativa de registrar e exibir a condição de liberdade com aquela tecnologia pode ter sido delas mesmas que estavam diante das lentes. É notável que elas sejam retratadas em atitudes altivas numa época em que vigorava o racismo científico. Notem que no retrato abaixo, a jovem não aparece com apetrechos de trabalho e exibe elegância com camisu e xale bem posicionado, turbante e colar próprios às mulheres negras sem trazer referência a qualquer condição de submissão naquela ordem escravista.

 

Figura 4 – “Negra da Bahia”, Albert Henschel


Alberto Henschel, Negra da Bahia. Convênio Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Leipzig/ Instituto Moreira Salles. 

Ainda assim, os cartões de visitas mantiveram o caráter uniformizador do que seria a raça negra na tropicalidade brasileira, então redescoberta na Bahia. Marc Ferrez e Albert Henschel – este, o autor da foto acima- merecem destaque neste investimento na Bahia. Marc Ferrez foi um brasileiro que, tendo vivido na França desde os cinco, voltou à terra natal por volta dos cinquenta anos. Em busca dos supostos “tipos” negros e indígenas, Ferrez ao integrar uma missão científica, em 1875, fotografou os botocudos que viviam no sul da Bahia. Quando apresentou os resultados de seu trabalho científico na Exposição Antropológica Brasileira, em 1882, ele expôs objetos e fotografias dos botocudos, o que impressionou ao público, já que eles eram tidos como ferozes e indomáveis. Estas representações ajudavam a consolidar a ideia de que as populações indígenas eram incivilizáveis porque fariam parte da natureza selvagem, essencialmente bruta. Mesmo que estejamos tão afastados do tempo de Ferrez e que os povos indígenas continuem empenhados em garantir seus direitos e suas terras, ainda é recorrente que viajantes do século XXI visitem o sul da Bahia na expectativa de conhecer o Brasil primitivo, o suposto índio original. Esta expectativa reitera a leitura que pretende reter tais populações num tempo passado, paralisado; como se fossem espécimes raras, sobrevivências, e não grupos humanos que continuam compondo ativamente a sociedade brasileira. Neste sentido, o cartão postal foi um elemento na constituição das raças no Brasil, e a Bahia foi um dos laboratórios desta alquimia política.

 

Figura 5 - “Negra da Bahia”, Marc Ferrez


Marc Ferrez, Negresse de Bahia. Coleção Gilberto Ferrez. Acervo Instituto Moreira Sales. (Liberado apenas para uso de natureza cultural) 

Figura 6 - “Índia Botocudo com criança”, Marc Ferrez


Marc Ferrez, Índia Botocudo com criança. Coleção Gilberto Ferrez. Acervo Instituto Moreira Sales. (Liberado apenas para uso de natureza cultural) 

Henschel foi outro fotógrafo que fez da Bahia seu laboratório de imagens. Ele nasceu em Berlim e imigrou para o Brasil em maio de 1866. O seu primeiro porto de desembarque foi Recife, onde instalou o estúdio Photografia Allemã. Pouco tempo depois abriu filiais em Salvador e no Rio de Janeiro. Não por acaso três cidades com significativa população liberta e negra nascida livre, inclusive depois da abolição em 1888. É possível notar que, ao longo do tempo, a especialidade do seu estúdio passaria a ser os retratos de negros; o que demonstra o quanto este tipo de imagem era vendável a Europa. Era o interesse pelos tais “tipos humanos”, uma forma de classificação racial que inventava o outro, o não europeu, que movimentava o comércio daqueles retratos. Em milhares de cópias, os cliques de trabalhadores escravizados ou libertos em seus ofícios ou em seus costumes, atravessaram o Atlântico.

 

Figura 7 – “Negra com criança na Bahia

Henschel, Alberto


Figura 7: Bahia 1870. Alberto Henschel, Negra com criança. Fonte: Convênio Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Leipzig/ Instituto Moreira Salles. (Liberado apenas para uso de natureza cultural). 

As fotografias de mulheres, fosse com crianças como vemos acima, fosse em trajes “típicos da bahia” foi o principal investimento e, provavelmente, o mais lucrativo, empreendimento destes senhores da imagem. As duas vistas a seguir, são indicativas nesta direção.

 

Figura 8 – “Duas negras posando em estúdio”, Henschel, Alberto


Alberto Henschel, Duas negras posando em estúdio. Convênio Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Leipzig/ Instituto Moreira Salles. (Liberado apenas para uso de natureza cultural)

Figura 9 – Negra da Bahia (Nu de jovem de Salvador), Henschel, Alberto


Alberto Henschel, Negra da Bahia, 1869. Convênio Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Leipzig/ Instituto Moreira Salles. (Liberado apenas para uso de natureza cultural)

Ambas circularam como cartões postais e, de modos diferentes, trazem impressões acerca da raça negra na Bahia. Na primeira fotografia vemos uma mulher negra com roupas e adereços que a vinculam ao escravismo da época. Os colares, turbante e pulseiras marcam a beleza dela, mas também a sua condição sócio racial, já que eram específicas das mulheres escravizadas ou libertas. Na segunda imagem, os seios desnudos remetem ao corpo negro como um exemplar da sua raça. É a nudez como forma de revelar o primitivo, tal como era analisado nos estudos científicos do período. Estas representações estavam circulando em meio à crise do escravismo e sinalizam para os lugares sociais que seriam reservados para as mulheres negras na sociedade do pós-abolição. Por outro lado, não é possível escapar dos olhares desafiadores com que estas mulheres encaram as lentes do alemão. Se ele as via por meio de uma novidade tecnológica e pelo conjunto de crenças científicas que as punham na situação de amostras da raça negra, elas o olham firmemente. Ao encará-lo, elas ultrapassam a mera figuração ou representação de uma raça, se impõem como sujeitos da sua própria imagem.

O que não estava ao alcance de viajantes e fotógrafos era o quanto a diversidade de origens no continente africano garantiu a pluralidade de referências culturais negras no mundo Atlântico. Na Bahia se misturaram línguas, rituais, divindades, ritmos e valores inventando a América portuguesa. A raça negra na Bahia, portanto, se fez também com o diálogo cultural entre diversos povos africanos. Por isso, é fundamental pensar as culturas negras, como já disse Paul Gilroy, muito mais como resultados da diáspora do que como uma bagagem que sobreviveu intacta aos horrores da captura de escravizados em África, às incertezas da travessia e a dureza do cativeiro. Tão pouco quando falamos de cultura negra, portanto, estamos nos referindo apenas a gastronomia, vestuário, danças e música que se prestam ao entretenimento. Ao falarmos de cultura negra na Bahia, e em outros portos diaspóricos, estamos nos referindo a um repertório vasto de tradições, visões de mundo e recriações de rituais que foram possíveis em certas circunstâncias dado os limites de expressão das populações africanas e de seus descendentes. Este repertório conta sobre as experiências destes povos na América. O candomblé, por exemplo, é visto com a maior expressão da religiosidade negra de matriz africana, que tem como principal referência as casas de culto fundadas na Bahia ainda no século XIX. Dizer ser de matriz africana é uma forma de marcar a origem desta religião, mas também de reconhecer o papel criativo e político daqueles que a tornaram, por força das circunstâncias, afro-brasileira. Deste modo, o candomblé representa a capacidade dos africanos e seus descendentes de preservar suas crenças e cosmovisões e também a habilidade da população negra para adaptar rituais, reunir num mesmo terreiro orixás cultuados por povos diferentes e fundar sincretismos com o catolicismo. Neste sentido, cultura como expressão da raça negra nada tem a ver como uniformidade ou com tradições africanas intocadas, que ganham expressão para a mera exibição turística. Ao contrário. As culturas das populações negras são dinâmicas porque se recriam o tempo todo, e são políticas porque falam sobre formas de resistência no pós-abolição. Então, quando alguém visita a Bahia não vai encontrar um pedaço resguardado do continente africano nem uma raça naturalmente constituída, mas a pulsante capacidade criativa e resistente da população negra no Brasil.

 

 

LINK PARA AS IMAGENS PESQUISADAS:

Figura 1: http://pinturapitoresca.blogspot.com/search/label/RUGENDAS%20Johann%20Moritz

Figura 2: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/20025/san-salvador

Figura 3: https://www.brasilianaiconografica.art.br/obras/19265/sem-titulo

Figura 4: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/4486

Figura 5: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/4736

Figura 6: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/6407

Figura 7: http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/4516

 

Imagem de capa:

Detalhe da obra “San-Salvador”,  de Johann Moritz Rugendas, aquarela e litografia sobre papel, acervo Biblioteca Nacional.

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